quarta-feira, 7 de julho de 2010

As muitas vozes de Ferreira Gullar


Ferreira Gullar, nascido em São Luís do Maranhão em 1930, é reconhecido não só como poeta, mas como crítico de arte, por meio dos polêmicos Vanguarda e subdesenvolvimento e Argumentação contra a morte da arte, nos quais discorre sobre o enfraquecimento das vanguardas. Foi, com certeza, o único poeta que surgiu na linha da vanguarda, ao lado do concretismo, e trocou esse caminho primeiramente pela experiência neoconcreta (reunida em livro lançado pela Cosac Naify em 2007), depois pela poesia dita social, voltada ao grande público. Produziu três livros memoráveis de poemas antes dos anos 1990 – o primeiro, A luta corporal (1954), desintegrando palavras, numa semelhança com o concretismo; o segundo, O vil metal (1960), com versos rigorosos, e o terceiro Poema sujo (1975), fluxo intenso de imagens passadas, equilibrado e conciso. No entanto, também apresentou obras excessivamente políticas, sem a qualidade literária que correspondesse aos seus argumentos, como Dentro da noite veloz (1975) e Na vertigem do dia (1980). Ou seja: um poema, mesmo contendo uma ideologia, deve ter um tratamento formal, o que faltava em alguns dos poemas de Gullar. Este afirmou, algumas vezes, ter deixado de lado a poesia de invenção, ou experimental (num de seus poemas, se despediu até de Rimbaud), mas, em seus melhores momentos, nunca abandonou aquela poesia que hoje critica – a que ele considera de vanguarda (ou seja, a poesia com ar contemporâneo e não voltada apenas a formas e imagens já desgastadas). Em 1999, sempre ressaltando a morte das vanguardas, Gullar lançou Muitas vozes, em que a poesia não é só utilizada para seu manancial de imagens poéticas, mas, em sua maior parte, como resultado de um trabalho de linguagem adequado à poeticidade atual.
Todas essas idiossincrasias permeiam a sua Poesia completa, teatro e prosa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008, 1264 p.), que acaba de ser lançada e é acompanhada de uma boa fortuna crítica, com comentários de críticos como Otto Maria Carpeaux, Alfredo Bosi e Davi Arrigucci Jr. e por uma iconografia – características da coleção de livros de poesia da Nova Aguilar. Nela, se percebe que, mais do que qualquer coisa, Gullar está impregnada de vozes de outros poetas. Como escreve no poema “Muitas vozes”, que dá o título ao livro, não à toa, pois é o melhor de todos, traz aquela relação referida entre a fala própria do poeta e a voz de outros poetas, resultando em muitas vozes (no plano poético):


Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.
(…)
A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos
rumores no capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)
(…)
tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esses fósseis à fala.
Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.
Por seus poemas, vistos numa escala progressiva, notamos que mesmo no livro posterior a Na vertigem do dia, Barulhos (1987), ainda excessivamente calcado na política, Gullar já dava prenúncios do equilíbrio entre a poesia de linguagem, calcada no cerne de Cabral, e a poesia com imagens brasileiras, própria de sua obra, desde A luta corporal, obra que marca a transição entre a poesia guerra/paz de Carlos Drummond de Andrade e do concretismo (Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari). Neste ponto, Gullar soube ser o eixo de transição.
Os poemas de Gullar em Muitas vozes possuem, como principal obsessão, atrair o leitor para a dualidade entre o barulho e o silêncio. Como centro dessa dualidade, Gullar injeta o tema mais recorrente em suas últimas obras: a morte. Para comprovar isso, basta ir direto à primeira parte do livro, “Muitas vozes”. Na seqüência 8 de o poema “Nasce o poeta”, em que há uma espécie de história sobre a formação do poeta e de si mesmo, Gullar escreve:
No princípio
era o verso
alheio
Disperso
em meio
às vozes
e às coisas
o poeta dorme
sem se saber
ignora o poema
que não tem nada a dizer
Na segunda parte do livro, “Ao rés da fala”, o poeta volta-se para temas do dia-a-dia, uma vez que sua poesia está sempre num impasse entre a narrativa e a prosa, perceptível já na seleção de poemas “As revelações espúrias” de A luta corporal. É, certamente, o momento mais fraco de Muitas vozes, uma vez que o poeta não soluciona a mistura entre a linguagem e a o cotidiano, preferindo se referir a parentes (pais, filhos), a figuras políticas (Allende) e literárias (Mallarmé). O melhor poema desta parte é “Lição de um gato siamês”, tendo como tema a morte, com bons versos:
O tempo fora
de mim
é relativo
mas não o tempo vivo:
esse é eterno
porque afetivo
– dura eternamente
enquanto vivo
E como não vivo
além do que vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo).


É, no entanto, na seção “Poemas recentes” em que Gullar tem seus melhores momentos como poeta em muito tempo. Há poemas de uma concisão raramente encontrada na poesia dita moderna, cujo encadeamento de versos mostra o talento do poeta para o artesanato, tão visado:
A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes
só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas
invandindo-te inteiro
tal dum mar um marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho.
Outro poema excepcional é “Nova concepção da morte”, uma espécie de hino de Gullar ao tema da morte, que o persegue. Seus versos iniciais mostram bem isso: “Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso / na carne, como sempre ocorre aos seres vivos; / / um aviso, um sinal que não lhe veio de fora, / mas do fundo do corpo, onde a morte mora, / / ou dizendo melhor, onde ela circula / como a eletricidade ou o medo, na medula / / dos ossos e em cada enzima, que veicula, / no processo da vida, esse contrário: a morte”.
“Manhã de novembro” é outro bom poema: “Meu gato siamês / / (de veludo e garras, / cheio de sons) / / deita-se / ao sol / (da morte, / sabemos nós) / / disciplicente / e eterno”. “Coito”, por sua vez, é um poema erótico agressivo (com versos fortes, quase catulianos: “Vem de ti o sinal / no cheiro ou no tato / que faz acordar o bicho / em seu fosso: / / na treva, lento, / se desenrola / e desliza / em direção a teu sorriso”). O poema “Infinito silêncio” mostra um Gullar ungarettiano: “houve / (há) / um enorme silêncio / anterior ao nascimento das estrelas / / antes da luz / / a matéria da matéria / / de onde tudo vem incessante e onde / tudo se apaga / / eternamente / / esse silêncio / grita sob nossa vida / e de ponta a ponta / a atravessa / estridente”.
Um poema que merece consideração à parte é “Morrer no Rio de Janeiro”, uma espécie de prosa em versos, extraordinário em sua concisão temática, com versos de rara sensibilidade, sobre a relação entre o poeta, mais velho, e sua amada: “Se for março / quando o verão esmerila a grossa luz / nas montanhas do Rio / teu coração estará funcionando normalmente / entre tantas outras coisas que pulsam na manhã / ainda que possam de repente enguiçar.”
Na última seção de Muitas vozes, “Poemas resgatados”, Gullar prefere se ater ao imaginário referencial de seus poemas de A luta corporal. “O poema na rua” lembra os poemas iniciais de Gullar: “coisa clara / fruta / ata / polpa / / como palavra / / ou lavoura / / ou toalha / que esvoaça / / o poema / na mente do poeta / a caminhar / na rua Duvivier”.
Os doze anos que separam Barulhos de Muitas vozes mostram a grande vontade de Gullar reunir seus melhores momentos, e de amadurecer novamente seu verso, esquecido desde Poema sujo. Como fazem, atualmente, os grandes poetas: escrever o necessário, só o que interessa. A julgar por Muitas vozes, daí o destaque desse livro em sua obra, Gullar reencontra sua linguagem, quase perdida desde Poema sujo, mesmo que, nessa tentativa, ainda reserve momentos um pouco mais fracos. Gullar, como poeta, tem muitas vozes. Algumas, sem inspiração. Nos poemas mais recentes de Gullar, apresentados em sua obra completa, colhidos de sites ou revistas, nota-se exatamente essa tendência não a seguir uma poesia de cunho mais ideológico, e sim mais experimental, como em Muitas vozes – cuja linguagem abriu a obra de Gullar para o novo século. Esses poemas mostram um diálogo mais aberto com o contemporâneo e o atemporal, revelando uma consciência de linguagem sobretudo na utilização de rimas (que haviam sido trocadas pela prosa em verso de maus momentos como aqueles que vemos em Dentro da noite veloz e Na vertigem do dia). Gullar passou a utilizar recentemente detalhes sonoros que há, por exemplo, na poesia de Augusto de Campos, com uma concisão sonora em poucos versos, revelando uma influência mais clara, antes apenas entrevista, de João Cabral, quando utiliza poemas em quadra, por exemplo. É curioso, aliás, como em Indagações de hoje, livro ensaístico, Gullar condenava a frieza de Cabral em A educação pela pedra. Para ele, o poeta pernambucano daria preferência ao artesanato em detrimento da vida, o que não passa de um rótulo comum fixado no trabalho de poetas modernos. De qualquer modo, ainda em seus trabalhos recentes, Gullar contém uma dose maior de surrealismo, que foi, afinal, o movimento que fez eclodir A luta corporal e O vil metal, seus dois primeiros (e melhores) livros.
A sua Poesia completa traz, no apêndice, sua primeira obra, nunca antes republicada, Um pouco acima do chão (1949) – quando a lemos, temos a certeza de que Gullar, ao não publicá-la, era coerente com o que deu certo em seu projeto literário. Os cordéis continuam sendo uma queda muito grande em relação aos livros iniciais; é bom o leitor pular. Há também peças de teatro na versão da Nova Aguilar. Mas Gullar é no máximo um dramaturgo razoável. Lamenta-se também que ele publique apenas alguns poemas de seu próximo livro, Em alguma parte alguma – pelo valor do livro da Nova Aguilar, seria interessante que houvesse um inédito também inserido. Também não inclui o poema “O formigueiro” nem poemas de Relâmpagos (obra com diálogos com artes plásticas e fotografias) – apesar da inclusão do bom Crime na flora. Na verdade, há muitos Gullares – que não se totalizam neste livro (até em poemas infantis, de qualidade por sinal, incluídos). O que sobrevive nele são as “muitas vozes” que vêm à luz. É nelas que está o melhor do projeto de Gullar, aquele que desenvolve o fluxo de Poema sujo e procura o cheiro displicente dos jasmins a que tanto recorre em seus poemas.

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