sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

FELIZ NATAL

Para todos que se esforçam pelo seu futuro, desejo-lhes um feliz natal e a aprovação no vestibularr!!!!!!!!!!!!

terça-feira, 16 de novembro de 2010

RETA FINAL

Moçada, tá chegando a hora. Não dá pra relaxar. Vamo descer a lenha.
Prato do dia: gororoba no disco do arado

Ingredientes:
Qualquer tipo de carne e alguns legumes.


Modo de preparo: misture tudo e meta fogoooooooooo.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O PAGADOR DE PROMESSAS - DIAS GOMES

Zé do burro era um homem simples do interior da Bahia, conhecido por todos, principalmente pelo fato de existir entre ele e seu animal uma amizade muito profunda. Onde estivesse, também estaria o burro, em todos os afazeres diários e em todos os lugares que freqüentava.
Ao ter o seu animal ferido pela queda de um galho de árvore na cabeça, fez uma promessa. Se seu burro ficasse bom, daria parte de suas terras aos pobres e levaria uma cruz tão pesada quanto a de Cristo até o altar-mor de uma igreja de Santa Bárbara. Como em sua cidade não havia igreja da Santa, fez a promessa em um terreiro de cancomblé, onde ela é conhecida pelo nome de Iansan.
O animal ficou bom e seu dono, além de dividir parte de suas terras, caminhou quarenta e dois quilômetros carregando a cruz pesada nas costas, seguido por Rosa sua esposa, até chegar à igreja em Salvador.
Chegaram lá no dia da festa de Santa Bárbara por volta das quatro horas da madrugada, exaustos, famintos, pararam para descançar na escadaria da igreja ainda fechada. Muito aborrecida e enfadada Rosa passou a se lamentar. Enquanto isso, um gigolô que retornava do meretrício ficou muito interessado pela beleza daquela jovem mulher, conseguiu se aproximar do casal de peregrinos e convenceu Zé do Burro a permitir que sua esposa deixasse o local e fosse repousar em um hotel perto dali. Chegando lá, aproveitou-se do fato de Rosa estar desiludida com a vida ao lado do marido e bastante insatisfeita com os últimos acontecimentos, teve um envolvimento sexual com ela.
Ao amanhecer, quando o padre viu aquele homem com uma cruz na escadaria da igreja, e tomou conhecimento da promessa feita em um terreiro de candomblé para Iansan, Santa Bárbara, pela cura de um burro, recusou-se a receber Zé e sua cruz, acusando-o de heresia e culto ao demônio. O jovem padre não admitia o sincretismo religioso, resolveu fechar as portas e somente abrí-las quando aquele homem desistisse e fosse embora. Por sua vez, Zé do Burro decidiu que só sairia quando cumprisse sua promessa integralmente.
As pessoas que chegavam para a procissão eram atraídas por aquela cena e a notícia se espalhava entre o povo, até que um repórter foi ao local pra fazer uma matéria sensacionalista, distorcendo os fatos e transmitindo a notícia de acordo com as próprias tendências políticas, fazendo frente ao sistema do País mergulhado numa ditadura militar.
Enquanto isso, Bonitão, como era conhecido o gigolô, entrou em contato com a polícia e levantou suspeitas sobre Zé do Burro, em uma trama para prendê-lo e deixar o caminho livre, podendo assim agenciar Rosa na prostituição.
Mais tarde, depois da chegada do delegado e após muitos questionamentos sobre a dignidade da promessa e da proíbição de sua entrada na igreja, foi anunciada a detenção do pagador de promessa que, profundamente consternado, resistiu à prisão e foi morto pela polícia na presença de todos.



Encenada pela primeira vez a 29 de julho de 1960, no Teatro Brasileiro de Comédia (São Paulo), essa peça marca o início da segunda fase do teatro de Dias Gomes e sua consagração como um dos mais destacados dramaturgos contemporâneos do Brasil. Considerada por Anatol Rosenfeld como uma tragédia, no sentido clássico do termo, O Pagador de Promessas, segundo o próprio Dias Gomes, “é a história de um homem que não quis conceder - e foi destruído”.
Trata-se de um texto escrito para teatro, ou seja, para ser levado ao palco, ser encenado. A peça é dividida em três atos, sendo que os dois primeiros ainda são subdivididos em dois quadros cada um. Após a apresentação dos personagens, o primeiro ato mostra a chegada do protagonista Zé do Burro e sua mulher Rosa, vindos do interior, a uma igreja de Salvador e termina com a negativa do padre em permitir o cumprimento da promessa feita. O segundo ato traz o aparecimento de diversos novos personagens, todos envolvidos na questão do cumprimento ou não da promessa e vai até uma nova negativa do padre, o que ocasiona, desta vez, explosão colérica em Zé do Burro. O terceiro ato é onde as ações recrudescem, as incompreensões vão ao limite e se verifica o dramático desfecho.
Primeiro ato. Primeiro quadro.
A ação da peça tem início nas primeiras horas da manhã (4 e meia), numa praça, em frente a uma igreja, em Salvador. O personagem denominado Zé do Burro carrega uma cruz e se aloja na frente da igreja. A seu lado Rosa, sua mulher, apresentada como tendo "sangue quente" e insatisfação sexual. Zé espera a igreja abrir para cumprir sua promessa, feita a Santa Bárbara. Aparecem no lugar, algum tempo depois, Marli e Bonitão: ela prostituta; ele, gigolô. Há uma clara relação de exploração e dependência entre eles. Encontrando Zé, Bonitão dirige-se a ele e percebe ser alguém ingênuo. Rosa, por sua vez, conversando com o gigolô, queixa-se de Zé, contando que ele, na sua promessa, dividiu suas terras com lavradores pobres. Percebendo a ingenuidade, Bonitão propõe-se a providenciar um local para Rosa descansar. Zé não só aceita, como incentiva. Saem os dois, Bonitão e Rosa, de cena.
Segundo quadro.
Aos poucos, começa o movimento ao redor da praça. Aparecem a Beata, o sacristão e o Padre Olavo, titular da igreja. Zé explica a promessa: Nicolau foi ferido com a queda de uma árvore; estando para morrer, Zé fez a promessa. O burro - Nicolau é um burro! - salva-se. Ingenuamente, Zé revela ter usado as rezas de Preto Zeferino e feito a promessa num terreiro de candomblé, a Iansã, equivalente afro de Santa Bárbara. O padre fica escandalizado. Estabelece-se o conflito. O sincretismo Iansã - Santa Bárbara, natural para Zé do burro, é um grandioso pecado para o padre. A situação agrava-se com a revelação da divisão de terras. Impasse. O padre manda fechar a igreja e proíbe o cumprimento da promessa. Zé do burro fica atônico.
Segundo ato. Primeiro quadro.
Duas horas mais tarde, já a movimentação no lugar é intensa. O Galego, dono do bar, abriu seu estabelecimento. Surgem Minha Tia, vendedora de acarajés, carurus e outras comidas típicas, Dedé Cospe-Rima, poeta popular, ao estilo repentista e o Guarda. Zé do burro quer cumprir a promessa. O Guarda tenta intervir. Rosa reaparece com "ar culpado". Chega o Repórter. Seguindo a linha do oportunismo sensacionalista, o repórter quer tirar vantagens da história de Zé do Burro. Quer torná-lo um mártir, para virar notícia. Enquanto isso descobre-se que Rosa transou com Bonitão. Marli faz um pequeno escândalo, denunciando a história Rosa-Bonitão.
Segundo quadro.
Três da tarde, Dedé oferece poemas para Zé, a fim de derrotar o Padre. Aparecem, em momentos subseqüentes, o capoeirista Mestre Coca e o policial, o Secreta, chamado por Bonitão, ficando ambos, por enquanto, nas cercanias. Zé começa a perder a paciência e arma uma gritaria. O padre reage. Chega o Monsenhor, autoridade da igreja, propondo a Zé uma solução: ele, Monsenhor, na qualidade de representante da Igreja, pode liberar Zé da promessa, dando-a por cumprida. Zé não aceita, dizendo que promessa foi feita à Santa e só ela poderia liberá-lo. Segue o impasse. Zé explode novamente e avança com a cruz sobre a Igreja. O padre fecha a porta. Zé, já desesperado, bate com a cruz na porta. O drama é total.
Terceiro ato.
Entardecer. Muita gente na praça e nos arredores da Igreja. Há uma roda de capoeira. O Galego, oportunista, oferece comida grátis a Zé, pois a história está trazendo movimento ao seu bar. O Secreta, no bar, avisa que a polícia prenderá Zé, ameaçando os capoeiristas, caso eles interfiram. Marli volta. Ofende Rosa, ofende Zé. O protagonista parece mudar de atitude. Resolve ir embora "à noite". Rosa quer ir embora já. Conta que Bonitão avisou a polícia. Retorna o repórter, que tenta montar um verdadeiro circo em torno do Zé, com o objetivo de vender o jornal. Chega Bonitão e convida Rosa para ir com ele. Zé pede a ela para ficar. Rosa hesita, a princípio, mas, em seguida, vai com Bonitão. Mestre Coca avisa Zé sobre a chegada da polícia. Zé está perplexo: "Santa Bárbara me abandonou". Da igreja saem o Sacristão, o Guarda, o Padre e o Delegado. Tensão da cena acentua-se. Zé ainda tenta, ingênua e inutilmente, explicar alguma coisa. Ao ser cercado, puxa uma faca. As autoridades reagem. Os capoeiristas também. Briga e confusão. De repente, um tiro espalha gente para todos os lados. Zé é mortalmente ferido. Mestre Coca olha para os companheiros, que entendem a mensagem. Os capoeiristas tomam o corpo do Zé colocam-no sobre a cruz e, ignorando padre e polícia entram na igreja, carregando a cruz.


A peça de Dias Gomes tem nítidos propósitos de evidenciar certas questões socio-culturais da vida brasileira, em detrimento do aprofundamento psicológico de seus personagens. Assim, ganha força no drama a visão crítica quanto:
a) à intolerância da Igreja católica, personificada no autoritarismo do Padre Olavo, e na insensibilidade do Monsenhor convocado a resolver o problema;
b) à incapacidade das autoridades que representam o Estado - no episódio, a polícia - de lidar com questões multiculturais, transformando um caso de diferença cultural em um caso policial;
c) à voracidade inescrupulosa da imprensa, simbolizada no Repórter, um perfeito mau-caráter, completamente desinteressado no drama do protagonista, mas muito interessado na repercussão que a história pode ter;
d) ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural: Zé do Burro não consegue compreender por que lhe tentam impedir de cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a imprensa não conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com outros códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça mostra as variadas facetas populares: o gigolô esperto, a vendedora de quitutes, o poeta improvisador, os capoeiristas. O final simbólico aponta em duas direções. Em primeiro lugar a morte do Zé do Burro mostra-se com fim inevitável para o choque cultural violento que se opera na peça: ninguém, entre as autoridades da cidade grande, é capaz de assimilar o sincretismo religioso tão característico de grandes camadas sociais no Brasil, especialmente no interior nordestino. Em segundo lugar, a entrada dos capoeiristas na igreja, carregando a cruz com o corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

ERRO ORTOGRÁFICO NA LISTAGEM DO TSE??!!!!!!! ENCONTRE

ENCONTRE O ERRO ORTOGRÁFICO

Nas ruas da cidade

Isso aí moçada, agora vou colocar umas fotos do que eu tiro pelas minhas andanças.

sábado, 2 de outubro de 2010

MAIS DE 2000 VISITAS E NENHUM COMENTÁRIO!

Porra!!!!!!!!!!!!!!!!
Um monte de visita e quando eu entro no blog não tem nenhum comentário, nenhuma pergunta, ninguém me xinga, não perguntam do Miguelito, se eu sei costura e fazer trico.......


domingo, 26 de setembro de 2010

ARCADISMO

Moçada, não esqueçam:
  • Fugere Urbem
  • Bucolismo (não é doença)
  • Retorno aos modelos clássicos
  • Pastorialismo
  • Simplicidade
  • Conjuração Mineira

  • Cláudio Manuel da Costa
  • Tomás Antônio Gonzaga - "Marília de Dirceu"

sábado, 25 de setembro de 2010

Nem só de Rock'n Roll vive o mundo.

Quem não chorar é porque não tem coração.

Alvo também é cultura

Esse tiozinho ae, Yamandu Costa, é o bicho. Ouvi falar que o pai dele trancava ele no quarto para ficar estudando violão. Ah, se eu tivesse um castigo desse....

POSTAGENS

Galera, no blog há várias apresentações de slides que você pode baixar. É só procurar nas postagens mais antigas. Aqui tem de tudo, menos PORNOGRAFIA heheheheh.

Eu ensinei esse piá aí do vídeo.

PROJETO DOM BOSCO, IRATI TB ESTAVA LÁ

AULÃO DE VÉSPERA PRIMAVERA 2010

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

LEITURA OBRIGATÓRIA UNICENTRO

Moçada, estas são as obras que são pedidas na Unicentro. Os resumos estão todos no blog, é só procurar abaixo.
http://www.unicentro.br/vestibular/primavera/obras2010.pdf

quinta-feira, 8 de julho de 2010

EÇA DE QUEIROZ

Civilização (Conto), de Eça de Queirós

Contos, de Eça de Queirós


Os contos de Eça de Queirós foram reunidos e publicados em 1902. Paixão e realismo se misturam e enriquecem os textos do autor. Esta aparente contradição se explica se pensarmos que Eça era um admirador da poesia romântica de Victor Hugo e que, ao mesmo tempo, tinha como seus escritores favoritos Edgar Allan Poe, Baudelaire e Flaubert.

Em seus contos Eça abusa dos adjetivos, das longas descrições, e de prosopopéias que povoam o nosso imaginário com "máquinas de escrever como uma boca alvar e desdentada", ou sóis "sem sardas e sem rugas". O autor desenha tristezas, amores frustrados, dramas morais de todo tipo.

O contista se preocupa não só com a sonoridade do texto mas também com um bom enredo.

Apesar da variedade temática, pode-se perceber nos contos de Eça de Queirós uma grande preocupação com as dores humanas. Seus personagens são em geral tristes, alguns céticos, outros ingênuos, mas sempre atormentados.

Os contos Suave milagre, Adão e Eva no paraíso e, principalmente, Civilização, considerado a semente de A cidade e as serras, já antecipavam uma postura na qual se defendia a idéia de que a felicidade estaria na Natureza. Essa tese de que o homem só é feliz longe da civilização, na vida simples do campo, distante do progresso, da máquina, contém a virada na carreira de Eça de Queirós, dirigida, a partir daí, na superação da ironia e sátira dissolvente em prol de uma concepção de vida mais larga e humanitária, em que a crença substitui o ceticismo anterior.

Estão reunidos os contos: Singularidades de uma rapariga loura, Um poeta lírico, No moinho, Civilização, O tesouro, Frei Genebro, Adão e Eva no Paraíso, A aia, O defunto, José Matias, A perfeição e O suave milagre.

 


Civilização é um conto de Eça de Queiroz onde é narrada a vida de Jacinto, um homem novo e culto que vivia luxuosamente, rodeado dos mais sofisticados e recentes inventos e das mais belas obras-primas da literatura. O conto é o embrião do romance A Cidade e as Serras.

De fato, Jacinto era um homem sempre aborrecido, desanimado e entediado, apesar do luxo em que vivia. Era o protótipo do homem civilizado mas também da infelicidade. Tudo havia de mudar quando o protagonista decidiu ir passar uma temporada bem longe da civilização. Jacinto tentou superar o isolamento enviando para aí todos os equipamentos técnicos e demais apetrechos que julgava indispensáveis a uma vida civilizada e luxuosa. Contudo, ao chegar, apercebe-se que os caixotes enviados não tinham chegado e que a nenhuma da suas ordens, relativas à realização de obras na casa, tinha sido cumprida.

Inicialmente desmoralizado e ainda mais pessimista com tamanha "tragédia", Jacinto é, subitamente, invadido e transformado pela beleza e simplicidade da vida campestre. E vai ser assim, longe da civilização, dispensando os exageros do luxo, que Jacinto redescobre o prazer e a alegria de viver.

No conto Civilização, temos um confronto entre duas concepções de vida, expe-rienciadas por um mesmo personagem, o milionário Jacinto.

O conto tem como principal objetivo criticar o tipo de progresso que torna o homem escravo de uma sociedade de consumo e pode ser estruturado em duas partes: a primeira representa uma crítica à sociedade civilizada; a segunda, uma solução para essa crise.

Leia o conto na íntegra:

CIVILIZAÇÃO

Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto), que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado.
Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-Montes, espalhava, para reter as Fadas Benéficas, funcho e âmbar, Jacinto fora sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um lindo rio, murmuroso e transparente, com um leito muito liso de areia muito branca, refletindo apenas pedaços lustrosos de um céu de Verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereciam àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de champagne gelada mais doçura e facilidades do que a vida oferecia ao meu camarada Jacinto. Não teve sarampo e não teve lombrigas. Nunca padeceu, mesmo na idade em que se lê Balzac e Musset, os tormentos a sensibilidade. Nas suas amizades foi sempre tão feliz como o clássico Orestes. Do amor só experimentara o mel - esse mel que o amor invariavelmente concede a quem o pratica, como as abelhas, com ligeireza e mobilidade. Ambição, sentira somente a e compreender bem as idéias gerais, e a "ponta o seu intelecto" (como diz o velho cronista medieval) não estava ainda romba nem ferrugenta... E todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto já se vinha repastando de schopenhauer, do Ecclesiastes, de outros Pessimistas menores, e três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas só apalpasse palidez e ruína. Porquê?
Era ele, de todos os homens que conheci, o mais complexamente civilizado - ou antes aquele que se munira da mais vasta soma e civilização material, ornamental e intelectual. Nesse palácio (floridamente chamado o Jasmineiro) que seu pai, também Jacinto, construíra sobre uma honesta casa do século XVII, assoalhada a pinho e branqueada a cal - existia, creio eu, tudo quanto para bem o espírito ou da matéria os homens têm criado, através da incerteza e dor, desde que abandonaram o vale feliz e Septa-Sinu, a Terra das Águas Fáceis, o doce país Ariano.
A biblioteca, que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as paredes, inteiramente, desde os tapetes e Caramânia até ao teto - de onde alternadamente, através de cristais, o sol e a eletricidade vertiam uma luz estudiosa e calma - continha vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate.
Só sistemas filosóficos (e com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas colecionara os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil oitocentos e dezessete!
Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando este economista ao longo das estantes, oito metros de economia política! Assim se achava formidavelmente abastecido o meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais a inteligência - e mesmo da estupidez. E o único inconveniente este monumental armazém o saber era que todo aquele que lá penetrava inevitavelmente lá adormecia, por causa das poltronas, que providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das notas, a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o Corpo encontrava logo, para mal do Espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada de um leito.
Ao fundo, e com um altar-mor, era o gabinete de trabalho de Jacinto. A sua cadeira, grave e abacial, de couro, com brazões, datava do século XIV, e em torno dela pendiam numerosos tubos acústicos, que, sobre os panejamentos de seda cor de musgo e cor de hera, pareciam serpentes adormecidas e suspensas num velho muro de quinta. Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda e sagazes e subtis instrumentos para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de um manejo laborioso e lento: alguns com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas folhas de papel watman em que ele escrevia, e que custavam quinhentos reis, eu por vezes surpreendi gotas de sangue o meu amigo. Mas a todos ele considerava indispensáveis para compor as suas cartas (Jacinto não compunha obras), assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais, e as enciclopédias, e os guias, e os diretórios, atulhando uma estante isolada, esguia, em forma de torre, que silenciosamente girava sobre o seu pedestal, e que eu denominara o Farol. O que porém mais completamente imprimia àquele gabinete um portentoso caráter de civilização eram, sobre as suas peanhas e carvalho, os grandes aparelhos, facilitadores do pensamento - a máquina de escrever, os autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios.
Constantemente sons curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tic, tic, tic! Dlim, dlim, lim! Crac, crac, crac! Trrre, trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos esses fios mergulhavam em forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e disciplinadas! Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Porto, uma voz oracular e rotunda, no momento de exclamar com respeito, com autoridade: - "Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?" Pois, numa doce noite e S. João o meu supercivilizado amigo, desejando que uma senhoras parentas de Pinto Porto (as amáveis Gouveias) admirassem o fonógrafo, fez romper o bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a conhecida voz rotunda e oracular: - "Quem não admirará os progressos deste século?" Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou alguma mola vital - porque de repente o fonógrafo começa a redizer, sem descontinuação, interminavelmente, com uma sonoridade cada vez mais rotuna, a sentença o conselheiro: - "Quem não admirará os progressos deste século?" Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trémulos, torturava o aparelho. A exclamação recomeçava, rolava, oracular e majestosa: - "Quem não admirará os progressos deste século?" Enervados, retirámos para uma sala distante, pesadamente revestida dde panos de Arrás. Em vão! A voz de Pinto Porto lá estava, entre os panos de Arrás, implacável e rotunda: - "Quem não admirará os progressos deste século?" Furiosos, enterramos uma almofada na boca do fonógrafo, atirámos por cima mantas, cobertores espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão! sob a mordaça, sob as grossas lãs, a voz rouquejava, surda mas oracular: - "Quem não admirará os progressos deste século?" As amáveis Gouveias tinham abalado, apertando desesperadamente os xailes sobre a cabeça.
Mesmo à cozinha, onde nos refugiámos, a voz descia, engasgada e gosmosa: - "Quem não admirará os progressos deste século?" - Fugimos espavoridos para a rua.
Era de madrugada. Um fresco bando de raparigas, de volta das fontes, passava cantando com braçadas de flores:
Todas as ervas são bentas
Em manhã de S. João...
Jacinto, respirando o ar matinal, limpava as bagas lentas do suor. Recolhemos ao Jasmineiro, com o sol já alto, já quente. Muito de manso abrimos as portas, como no receio e despertar alguém. Horror! Logo da antecâmara percebemos sons estrangulados, roufenhos: "admirará... progressos... século?..." Só de tarde um eletricista pôde emudecer aquele fonógrafo horrendo.
Bem mais aprazível (para mim) do que esse gabinete temerosamente atulhado de civilização - era a sala de jantar, pelo seu arranjo compreensível, fácil e íntimo. À mesa só cabiam seis amigos que Jacinto escolhia com critério na literatura, na arte e na metafísica, e que, entre as tapeçarias de Arrás, representando colinas, pomares e pórticos da Ática, cheias de classicismo e luz, renovavam ali repetidamente banquetes que pela sua intelectualidade lembravam os de Platão. Cada garfada se cruzava com um pensamento ou com palavras destramente arranjadas em de pensamento.
E a cada talher correspondiam seis garfos, todos de feitios dessemelhantes e astuciosos: - um para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para a fruta, outro para o queijo. Os copos, pela diversidade dos contornos e das cores, faziam, sobre a toalha mais reluzente que esmalte, como ramalhetes silvestres espalhados por cima a neve. Mas Jacinto e os seus filósofos, lembrando o que o experiente Salomão ensina sobre as ruínas e amarguras o vinho, bebiam apenas em três gotas de água uma gota de Bordéus (Chateaubriand, 1860). Assim o recomendam - Hesíodo no seu Nereu, e Díocles nas suas Abelhas. E de águas havia sempre no Jasmineiro um luxo redundante - águas geladas, águas carbonatadas, águas esterilizadas, águas gasosas, águas de sais, águas minerais, outras ainda, em garrafas sérias, com tratos terapêuticos impressos no rótulo... O cozinheiro, mestre sardão, era daqueles que Anáxarogas equiparava aos Retóricos, aos Oradores, a todos os que sabem a arte divina de "temperar e servir a Ideia": e em Síbaris, cidade do Viver Excelente, os magistrados teriam votado a mestre Sardão, pelas festas de Juno Lacínia, a coroa de folhas de ouro e a túnica milésia que se devia aos benfeitores cívicos. A sua sopa de alcachofra e ovas de carpa; os seus filetes de veado macerados em velho Madeira com puré de nozes; as suas amoras geladas em éter, outros acepipes ainda, numerosos e profundos (e os únicos que toleravam o Jacinto) eram obras de um artista, superior pela abundância de ideias novas - e juntavam sempre a raridade do Sabor à magnificência da Forma. Tal prato desse mestre incomparável parecia, pela ornamentação, pela graça florida dos lavores, pelo arranjo dos coloridos frescos e cantantes, uma jóia esmaltada do cinzel de Meurice ou Cellini. Quantas tardes eu desejei fotografar aquelas composições de excelente fantasia, antes que o trinchante as retalhasse! E esta superfinidade o comer condizia deliciosamente com a do servir. Por sobre um tapete, mais fofo e mole que o musgo da floresta da Brocelande, deslizavam, como sobras fardadas e branco, cinco criados - e um pajem preto, à maneira vistosa do século XVIII. As travessas (de prata) subiam da cozinha e da copa por dois assessores, um para as iguarias quentes, forrado de tubos onde a água fervia, forrado e zinco, amónia e sal, e ambos escondidos por flores tão densas e viçosas que era como se até a sopa saísse fumegando os românticos jardins de Armida. E muito bem me lembro de um domingo de Maio em que, jantando com Jacinto um bispo, o erudito bispo de Chorazin, o peixe emperrou no meio do ascensor, seno necessário que o acudissem, para o extrair, pedreiros com alavancas.
Nas tardes em que havia "banquete de Platão" (que assim denominávamos essas festas de trufas e idéias gerais), eu vizinho e íntimo, aparecia ao declinar o sol, e subia familiarmente aos quartos do nosso Jacinto - onde o encontrava sempre incerto entre as suas casacas, porque as usava alternadamente de seda, de pano, de flanelas «Jaeghel», e de foulard das Índias. O quarto respirava o frescor e aroma do jardim por duas vastas janelas, providas magnificamente (além das cortinas de seda mole Luís XV) de uma vidraça exterior de cristal inteiro, de uma vidraça interior de cristais miúdos, de um toldo rolando na cimalha, de um estore de sedinha frouxa, de gazes que franziam e se enrolavam como nuvens, e de uma gelosia móvel de gradaria mourisca. Todos estes resguardos (sábia invenção de Holland & Cia, de Londres) serviam a guardar a luz e o ar - segundo os avisos de termómetros, barómetros e higrómetros, montados em ébano, e a que um meteorologista (Cunha Guedes) vinha, todas as semanas, verificar a precisão.
Entre estas duas varandas rebrilhava a mesa de toilette, uma mesa enorme de vidro, toda de vidro, para a tornar impenetrável aos micróbios, e coberta de todos esses utensílios de asseio e alinho que o homem do século XIX necessita numa capital, para não desfear o conjunto sumptuário da civilização. Quando o nosso Jacinto, arrastando as suas engenhosas chinelas de pelica e seda, se acercava desta ara - eu, bem aconchegado num divã, abria com indolência uma revista, ordinariamente a "Revista Electropática", ou a das "Indagações Psíquicas". E Jacinto começava... Cada um desses utensílios de aço, de marfim, de prata, impunham ao meu amigo, pela influência omnipoderosa que as coisas exercem sobre o dono (sunt tyrannoe rerum) o dever de o utilizar com aptidão e deferência. E assim as operações de alinhamento de Jacinto apresentavam a prolixidade, reverente e insuprimível, dos ritos de um sacrifício. Começava pelo cabelo... Com uma escova chata, redonda e dura, acamava o cabelo, corredio e louro, no alto, aos lados da risca; com uma escova estreita e recurva, à maneira do alfange de um persa, ondeava o cabelo sobre a orelha; com uma escova côncava, em forma de telha, apastava o cabelo, por trás, sobre a nuca... Respirava e sorria. Depois, com uma escova de longas cerdas, fixava o bigode; com uma escova leve e flácida acurvava as sobracelhas; com uma escova feita de penugem regularizava as pestanas. E deste modo jacinto ficava, diante o espelho, passando pêlos sobre o seu pêlo, durante catorze minutos.
Penteado e cansado, ia purificar as mãos. Dois criados, ao fundo, manobravam com perícia e vigor os aparelhos do lavatório que era apenas um resumo dos maquinismos monumentais da sala de banho. Ali, sobre o mármore verde e róseo do lavatório, havia apenas duas duchas (quente e fria) para a cabeça; quatro jactos, graduados desde zero até cem graus; o vaporizador de perfumes, a fonte de água esterilizada (para os dentes), o repuxo para a barba, e ainda as torneiras que rebrilhavam e botões de ébano que, de leve roçados, desencadeavam o marulho e o estridor de torrentes nos Alpes... Nunca eu, para molhar os dedos, me cheguei àquele lavatório sem terror - escarmentado da tarde amarga de Janeiro, em que bruscamente, dessoldada a torneira, o jacto de água a cem graus rebentou, silvando e fumegando, furioso, devastador... fugimos todos, espavoridos. Um clamor atroou o Jasmineiro. O velho grilo, escudeiro que fora de Jacinto pai, ficou coberto de ampolas na face, nas mãos fiéis.
Quando Jacinto acabava de se enxugar laboriosamente a toalhas de felpo, de linho, de cora entrançada (para restabelecer a circulação), de seda frouxa (para lustrar a pele), bocejava, com um bocejo cavo e lento.
E era este bocejo, perpétuo e vago, que nos inquietava a nós, seus amigos e filósofos. Que faltava a este homem excelente? Ele tinha a sua inabalável saúde de pinheiro bravo, crescido nas dunas; uma luz de inteligência, própria tudo o que alumiar, firme e clara, sem tremor ou morrão; quarenta magníficos contos de renda; todas as simpatias de uma cidade chasqueadora e céptica; uma varrida de sombras, mais liberta e lisa do que o céu de Verão... E todavia bocejava constantemente, palpava na face, com os dedos finos, a palidez e as rugas. Aos trinta anos Jacinto corcoveava, como sob um fardo injusto! E pela moralidade desconsolada e toda a sua ação parecia ligado, desde os dedos até à vontade, pelas malhas apertadas de uma rede que se não via e que o tratava. Era doloroso testemunhar o fastio com que ele, para apontar um endereço, tomava o lápis pneumático, a sua pena elétrica - ou, para avisar o cocheiro, apanhava o tubo telefônico!... Neste mover lento o braço magro, nos vincos que lhe arrepanhavam o nariz, mesmo nos seus silêncios, longos e derreados, se sentia o brado constante que lhe ia na alma: - Que maçada! Que maçada! - Claramente a via era para Jacinto um cansaço - ou por laboriosa e difícil, ou por desinteressante e oca. Por isso o meu pobre amigo procurava constantemente juntar à sua vida novos interesses, novas facilidades. Dois inventores, homens de muito zelo e pesquisa, estavam encarregados, um em Inglaterra, outro na América, de lhe noticiar e de lhe fornecer todas as informações, as mais miúdas, que concorressem a aperfeiçoar a confortabilidade do Jasmineiro. De resto ele próprio se correspondia com Edison. E pelo lado do pensamento, Jacinto não cessava também de buscar interesses e emoções que o conciliassem com a vida - penetrando à cata dessas emoções e desses interesses pelas veredas mais desviadas o saber, a ponto de devorar, desde Janeiro a Março, setenta e sete volumes sobre a evolução das idéias morais entre as raças negróides. Ah, nunca um homem deste século batalhou mais esforçadamente contra a seca de viver! Debalde! Mesmo de explorações tão cativantes como essa, através a moral dos negróides, Jacinto regressava mais murcho, com bocejos mais cavos!
E era então que ele se refugiava intensamente na leitura de Schopenhaeur e do Ecclesiastes. Porquê? Sem dúvida porque ambos esses pessimistas o confirmavam nas conclusões que ele tirava de um experiência paciente e rigorarosa: - "que tuo é vaidade ou dor, que quanto mais se sabe, mais se pena, e que ter sido rei de Jerusalém e obtido os gozos todos na vida só leva a maior amargura..." Mas porque rolara assim a tão escura desilusão - o saudável, rico, sereno e intelectual Jacinto? O velho escudeiro Grilo pretendia que "Sua Excelência sofria e fartura"!
Ora justamente depois desse Inverno, em que ele se embrenhara na moral os negróiddes e instalara a luz elétrica entre os arvoredos o jardim, sucedeu que jacinto teve a necessidade moral iniludível de partir para o Norte, para o seu velho solar de Torges. Jacinto não conhecia Torges, e foi com desusado tédio que ele se preparou, durante sete semanas, para essa jornada agreste. A quinta fica nas serras - e a rude casa solarenga, onde ainda resta uma torre o século XV, estava ocupada, havia trinta anos, pelos caseiros, boa gente de trabalho, que comia o seu caldo entre a fumaraça da lareira, e estendia o trigo a secar nas salas senhoriais. Jacinto, logo nos começos de Março, escrevera cuidadosamente ao seu procurador Sousa, que habitava a aldeia de Torges, ordenando-lhe que compusesse os telhados, caiasse os muros, envidraçasse as janelas. Depois mandou expedir, por comboios rápidos, em caixotes que transpunham a custo os portões o Jasmineiro, todos os confortos necessários a duas semanas de montanha - camas de penas, poltronas, divãs, lâmpadas e carcel, banheiras e nickel, tubos acústicos para chamar os escudeiros, tapetes persas para amaciar os soalhos. Um dos cocheiros partiu com um coupé, uma vitória, um, mulas e guizos.
Depois foi o cozinheiro, com a bateria, a garrafeira, a geleira, bocais de trufas, caixas profundas de águas minerais. Desde o amanhecer, nos pátios largos do palacete, se pregava, se martelava, como na construção de uma cidade. E as bagagens, desfilando, lembravam uma página de Heródoto ao narrar a invasão persa. Jacinto emagrecera com os cuidados daquele Êxodo. Por fim, largámos, numa manhã de Junho, com o Grilo, e trinta e sete malas.
Eu acompanhava Jacinto, no meu caminho para Goães, onde vive minha tia, a uma légua farta de Torges: e íamos num Wagon reservado, entre vastas almofadas, com perdizes e champagne num cesto. A meio da jornada devíamos mudar de comboio - nessa estação que tem um nome sonoro em ola e um tão suave e cândido jardim de roseiras brancas. Era domingo de imensa poeira e sol - e encontrámos aí, enchendo a plataforma estreita, todo um povaréu festivo que vinha da romaria e S. Gregório da Serra.
Para aquele trasbordo, em tarde de arraial, o horário só nos concedia três minutos avaros. O outro comboio já esperava, rente aos alpendres, impaciente e silvando. Uma sineta badalava com furor. E, sem mesmo atender às lindas moças que ali saracoteavam aos bandos, afogueadas, de lenços flamejantes, o seio farto coberto de ouro, e a imagem do santo espetada no chapéu - corremos, empurramos, furamos, saltamos para o outro wagon, já reservado, marcado por um cartão com as iniciais de Jacinto. Imediatamente o trem rolou. pensei então no nosso Grilo, nas trinta e sete malas! E debruçado da portinhola avistei ainda junto ao cunhal da estação, sob os eucaliptos, um monte de bagagens, e homens de bonnet agaloado que, diante delas, bracejavam com desespero. Murmurei, recaindo nas almofadas:
- Que serviço!
Jacinto, ao canto, sem descerrar os olhos, suspirou:
- Que maçada!
Toda a hora deslizamos lentamente entre trigais e vinhedo; e ainda o sol batia nas vidraças, quente e poeirento, quando chegamos à estação de Gondim, onde o procurador de Jacinto, o excelente Sousa, nos devia esperar com cavalos para treparmos a serra até ao solar e Torges. Por trás o jardim a estação, todo florido também de rosas e margaridas, Jacinto reconheceu logo as suas carruagens, ainda empacotadas em lona.
Mas quando nos apeamos no pequeno cais branco e fresco - só houve em torno de nós solidão e silêncio... Nem procurador, nem cavalos! O chefe da estação, a quem eu perguntara com ansiedade "se não aparecera ali o Sr. Sousa", tirou afavelmente o seu bonnet de galão. Era um moço gordo e redondo com cores de maçã camoesa, que trazia sobre o braço um volume de versos. "Conhecia perfeitamente o Sr. Sousa! Três semanas antes jogara com ele a manilha com o Sr. Sousa! Nessa tarde porém, infelizmente não avistara o Sr. Sousa!» O comboio desaparecera por detrás das fragas altas que ali pendem sobre o rio. Um carregador enrolava o cigarro, assobiando.
Rente da grade do jardim, uma velha toda de negro dormitava agachada no chão, diante de uma cesta de ovos.
E o nosso Grilo, e as nossas bagagens?... O chefe encolheu risonhamente os ombros nédios. Todos os nossos bens tinham encalhado decerto naquela estação de roseiras brancas que tem um nome sonoro em ola. E nós ali estávamos, perdidos na serra agreste, sem procurador, sem cavalos, sem Grilo, sem malas!
Para quê esfiar miudamente o lance lamentável? Ao pé da estação, numa quebra da serra, havia um casal foreiro à quinta, onde alcançámos para nos levarem e nos guiarem a Torges uma égua lazarenta, um jumento branco, um rapaz e um podengo. E aí começámos a trepar, enfastiadamente, esses caminhos agrestes - os mesmos decerto por onde vinham e iam de monte a rio os Jacintos do século XV.
Mas, passada uma trémula ponte e pau que galga um ribeiro todo quebrado por fragas (e onde abunda a truta adorável) os nossos males esqueceram, ante a inesperada, inconparável beleza daquela terra bendita. O divino artista que está nos céus compusera certamente esse monte, numa das suas manhãs e mais solene e bucólica inspiração.
A grandeza era tanta como a graça... Dizer os vales fofos de verdura, os bosques quase sacros, os pomares cheirosos e em flor, a frescura das águas cantantes, as ermidinhas branqueando nos altos, as rochas musgosas, o ar de uma doçura de paraíso, toda a majestade e toda a lindeza - não é para mim, homem de pequena arte. Nem creio mesmo que fosse para o mestre Horácio. Quem pode dizer a beleza das coisas, tão simples e inexprimível?
Jacinto adiante, na água tarda, murmurava: "Ah! que beleza!" Eu atrás no burro, com as pernas bambas, murmurava: "Ah! que beleza!" Os espertos regatos riam, saltando de rocha em rocha. Finos ramos de arbustos floridos roçavam as nossas faces, com familiaridade e carinho. Muito tempo um melro nos seguiu, de choupo para castanheiro, assobiando os nossos louvores. Serra bem acolhedora e amável... Ah! que beleza!
Por entre estes ahs maravilhados chegamos a uma avenida de faias, que nos pareceu clássica e nobre.
Atirando uma nova vergastada ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu podengo ao lado, gritava: "Aqui é que estêmos!" E ao funda das afaias havia com efeito um portão de quinta, que um escudo de armas de velha pedra, roída de musgo, grandemente afidalgava. Dentro já os cães ladravam com furor. E mal Jacinto, e eu atrás dele no burro de Sancho, transpusemos o limiar do solarengo, correu para nós do alto de uma escadaria um homem branco, rapado como um clérigo, sem colete, sem jaleca, que erguia para o ar, num assombro, os braços esgazeados. Era o caseiro, o Zé Brás. E logo ali, nas paredes do pátio, entre o latir dos cães, surdiu uma tumultuosa história que o pobre Brás balbuciava, aturdido, e que enchia a face de Jacinto de lividez e cólera. O caseiro não esperava Sua Excelência. (Ele dizia "sua inselência".)
O procurador, o Sr. Sousa, estava para a raia desde Maio, a tratar a mãe que levara um coice de mula. E decerto houvera engano, cartas perdidas... Porque o Sr. Sousa só contava com Sua Excelência em Setembro, para a vindima. Na casa nenhuma obra começara. E infelizmente para Sua Excelência os telhados ainda estavam sem telhas, e as janelas sem vidraças...
Cruzei os braços, num justo espanto. Mas os caixotes - esses remetidos para Torges, com tanta prudência, em Abril, repletos de colchões, de regalos, de civilização... O caseiro, vago, sem compreender, arregalava os olhos miúdos onde já bailavam lágrimas. Os caixotes? Nada chegara, nada aparecera. E na sua perturbação o Zé Brás procurava entre as arcadas do pátio, nas algibeiras das pantalonas... Os caixotes? Não, não tinha os caixotes.
Foi então que o cocheiro de Jacinto (que trouxera os cavalos e as carruagens) se acercou, gravemente. Esse era um civilizado - e acusou logo o governo. Já quando ele servia o senhor Visconde de S. Francisco se tinham assim perdido, por desleixo do governo, da cidade para a serra, dois caixotes com vinho velho da Madeira e roupa branca de senhora. Por isso ele, escarmentado, sem confiança na nação, não largara as carruagens: - e era tudo o que restava a Sua Excelência, o break, a vitória, o coupé e os guizos. Somente, naquela rude montanha, não havia estradas onde elas rolassem. E como só podiam subir para a quinta em grandes carros de bois - ele lá as deixara em baixo, na estação, quietas, empacotadas na lona...
Jacinto ficara plantado diante de mim, com as mãos no bolso:
- E agora?
Nada restava senão recolher, cear o caldo do tio Zé Brás, e dormir nas palhas que os fados nos concedessem.
Subimos. A escadaria nobre conduzia a uma varanda, toda coberta, em alpendre, acompanhando a fachada do casarão, e ornada entre os seus grossos pilares de granito por caixotes cheios de terra, em que floriam cravos. Colhi um cravo, entramos: e o meu pobre Jacinto contemplou enfim as salas do seu solar ! Eram enormes, com as altas paredes rebocadas a cal que o tempo e o abandono tinham enegrecido, e vazias, desoladamente nuas, oferecendo apenas como vestígio de habitação e de vida, pelos cantos, algum monte de cestos ou algum molho de enxadas. Nos tetos remotos de carvalho negro alvejavam manchas - que era o céu já pálido do fim de tarde, surpreendido através dos buracos do telhado. Não restava uma vidraça. Por vezes, sob os nossos passos uma tábua podre rangia e cedia.
Paramos, enfim, na última, a mais vasta, onde havia duas arcas tulheiras para guardar o grão; e aí depusemos melancolicamente o que nos ficara de trinta e sete malas - os paletós alvadios, uma bengala e um "Jornal da Tarde".
Através das janelas desvidraçadas, por onde se avistavam copas de arvoredos e as serras azuis de além-rio, o ar entrava, montesino e largo, circulando plenamente como em um eirado, com aromas de pinheiro bravo. E, lá de baixo, dos vales, subia, desgarrada e triste, uma voz de pegureiro cantando. Jacinto balbuciou: "É horroroso!" Eu murmurei: "É campestre!"

O Zé Brás no entanto, com as mãos na cabeça, desaparecera a ordenar a ceia para "suas excelências". O pobre Jacinto, esbarrondado pelo desastre, sem resistência contra aquele brusco desaparecimento de toda a civilização, caíra pesadamente sobre o poial de uma janela, e dali olhava os montes. E eu, a quem aqueles ares serranos e o cantar do pegureiro sabiam bem, terminei por descer à cozinha, conduzido pelo cocheiro, através de escadas e becos onde a escuridão vinha menos do crepúsculo do que de densas teias de aranha.
A cozinha era uma espessa massa de tons e formas negras, cor de fuligem, onde refulgia ao fundo, sobre o chão de terra, uma fogueira vermelha que lambia grossas panelas de ferro, e se perdia em fumarada pela grade escassa que no alto coava a luz. Aí um bando alvoraçado e palreiro de mulheres depenava frangos, batia ovos, escarolava arroz, com santo fervor... Do meio delas o bom caseiro, estonteado, investiu para mim jurando que "a ceia de suas excelências não demorava um credo". E como eu o interrogava a respeito de camas, o digno Brás teve um murmúrio vago e tímido sobre «enxergazinhas no chão».
- É o que basta, Sr. Zé Brás, acudi eu para o consolar.
- Pois assim Deus seja servido! suspirou o homem excelente, que atravessava nessa hora o transe mais amargo da sua vida serrana.
Voltando a cima, com estas consolantes novas de ceia e cama, encontrei ainda o meu Jacinto no poial da janela, embebendo-se todo da doce paz crepuscular, que lenta e caladamente se estabelecia sobre vale e monte. No alto já tremeluzia uma estrela, a Vésper diamantina, que é tudo o que neste céu cristão resta do esplendor corporal de Vênus! Jacinto nunca considerara bem aquela estrela - nem assistira a este majestoso e doce adormecer das coisas. Esse enegrecimento de montes e arvoredos, casais claros fundindo-se na sombra, um toque dormente de sino que vinha pelas quebradas, o cochichar das águas entre as relvas baixas - eram para ele como iniciações. Eu estava defronte, no outro poial. E senti-o suspirar como um homem que enfim descansa.
Assim nos encontrou neste contemplação o Zé Brás com o doce aviso de que estava na mesa a ceiazinha. Era adiante, noutra sala mais nua, mais negra. E aí, o meu supercivilizado Jacinto recuou com um pavor genuíno. Na mesa de pinho, recoberta com uma toalha de mãos, encostada à parede sórdida, uma vela de sebo, meio derretida num castiçal de latão, alumiava dois pratos de louça amarela, ladeados por colheres de pau e por garfos de ferro. Os copos de vinho grosso e baço conservavam o tom roxo do vinho que neles passara em partos anos de fartas vindimas. O cavilhete de barro com azeitonas deleitaria, pela sua singeleza ática, o coração de Diógenes.
Na larga broa estava cravado um facalhão... Pobre Jacinto.
Mas lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia.
Provou, e levantou-se para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada do caldo, mais cheia, mais lenta...
E sorriu, murmurando com espanto: "Está bom!" Estava realmente bom: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia. Eu, três vezes, com energia, ataquei aquele caldo: foi Jacinto que rapou a sopeira. Mas já, arredando a broa, arredando a vela, o bom Zé Brás pousara na mesa uma travessa vidrada, que transbordava de arroz com favas. ora, apesar de a fava (que os Gregos chamavam "ciboria") pertencer às épocas superiores da civilização, e promover tanto a sapiência que havia em Sício, na Galácia, um templo dedicado a Minerva Ciboriana - Jacinto sempre detestara favas. Tentou todavia uma garfada tímida. De novo os seus olhos, alargados pelo assombro, procuraram os meus. Outra garfada, outra concentração... E eis que o meu dificílimo amigo exclama: "Está ótimo!" Eram os picantes ares da serra? Era a arte deliciosa daquelas mulheres que em baixo remexiam as panelas, cantando o Vira, meu bem? Não sei: mas os louvores de Jacinto a cada travessa foram ganhando em amplidão e firmeza. E diante do frango louro, assado no espeto de pau, terminou por bradar: «Está divino!» Nada porém o entusiasmou como o vinho, o vinho caindo de alto, da grossa caneca verde, um vinho gostoso, penetrante, vivo, quente, que tinha em si mais alma que muito poema ou livro santo! mirando à luz de sebo o copo rude que ele orlava de espuma, eu recordava o dia geórgico em que Virgílio, em casa de Horácio, sob a ramada, cantava o fresco palhete da Rética.
E Jacinto, com uma cor que eu nunca vira na sua palidez schopenháurica, sussurrou logo o doce verso: Rethica quo te carmina dicat. Quem dignamente te cantará, vinho daquelas serras?
Assim jantamos deliciosamente, sob os auspícios do Zé Brás. E depois voltamos para as alegrias únicas da casa, para as janelas desvidraçadas, a contemplar silenciosamente um sumptuoso céu de Verão, tão cheio de estrelas que todo ele parecia uma densa poeirada de ouro vivo, suspensa, imóvel, por cima dos montes negros. Como eu observei ao meu Jacinto, na cidade nunca se olham os astros por causa dos candeeiros - que os ofuscam: e nunca se entra por isso numa completa comunhão com o universo. O homem nas capitais pertence à sua casa, ou se o impelem fortes tendências de sociabilidade, ao seu bairro. tudo o isola e o separa da restante natureza - os prédios obstrutores de seis andares, a fumaça das chaminés, o rolar moroso e grosso dos ônibus, a trama encarceradora da vida urbana... Mas que diferença, num cimo de monte com Torges! Aí todas essas belas estrelas olham para nós de perto, rebrilhando, à maneira de olhos conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença, outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma luz que chama, como se tentassem revelar os seus segredos ou compreender os nossos... E é impossível não sentir uma solidariedade perfeita entre esses imensos mundos e os nossos pobres corpos. Todos são obras da mesma vontade.
Todos vivem da ação dessa vontade imanente. Todos portanto, desde os Úranos até aos Jacintos, constituem modos diversos de um ser único, e através das suas transformações somam na mesma unidade. Não há idéia mais consoladora do que esta - que eu, e tu, e aquele monte, e o sol que agora se esconde, são moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim. Desde logo se somem as responsabilidades torturantes do individualismo. Que somos nós? Formas sem força, que uma força impele. E há um descanso delicioso nesta certeza, mesmo fugitiva, de que se é o grão de pó irresponsável e passivo que vai levado no grande vento, ou a gota perdida na torrente! Jacinto concordava, sumido na sombra. Nem ele nem eu sabíamos os nomes desses astros admiráveis. Eu, por causa da maciça e indesbastável ignorância de bacharel, com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Jacinto, porque na sua ponderosa biblioteca tinha trezentos e dezoito tratados de astronomia! Mas que nos importava de resto que aquele astro além se chamasse Sirius e aquele outro Aldebaran? Que lhes importava a eles que um de nós fosse José e o outro Jacinto? Éramos formas transitórias do mesmo ser eterno - e em nós havia o mesmo Deus. E se eles também assim o compreendiam, estávamos ali, nós à janela num casarão serrano, eles no seu maravilhoso infinito, perfazendo um ato sacrossanto, um perfeito acto de Graça - que era sentir conscientemente a nossa unidade, e realizar, durante um instante, na consciência, a nossa divinização.
Assim enevoadamente filosofamos - quando Zé Brás, com uma candeia na mão, veio avisar que "estavam preparadas camas de suas inselências..." Da idealidade descemos gostosamente à realidade, e que vimos então, nós os irmãos dos astros? Em duas salas tenebrosas e côncavas duas enxergas, postas no chão a um canto, com duas cobertas de chita; à cabeceira um castiçal de latão, pousado sobre um alqueire: e aos pés, como lavatório, um alguidar vidrado em cima de uma cadeira de pau!
Em silêncio, o meu supercivilizado amigo palpou a sua enxerga e sentiu nela a rigidez de um granito. Depois, correndo pela face descaída os dedos murchos, considerou que, perdidas as suas malas, não tinha nem chinelos nem roupão! E foi ainda Zé Brás que providenciou, trazendo ao pobre Jacinto para ele desafogar os pés uns tremendos tamancos de pau, e para ele embrulhar o corpo, docemente educado em Síbaris, uma camisa da caseira, enorme, de estopa mais áspera que estamenha de penitente, e com folhos crespos e duros como lavores em madeira... Para o consolar, lembrei que Platão, quando compunha o Banquete, Xenofonte, quando comandava os Dez Mil, dormiam em piores catres. As enxergas austeras fazem as fortes almas - e é só vestido de estamenha que se penetra no Paraíso.
- Tem você (murmurou o meu amigo, desatento e seco) alguma coisa que eu lei?... Eu não posso adormecer sem ler!
Eu possuía apenas o número do «Jornal da Tarde», que rasguei pelo meio, e partilhei com ele fraternalmente. E quem não viu então Jacinto, senhor de Torges, acaçapado à borda da enxerga, junto da vela que pingava sobre o alqueire, com os pés nus encafuados nos grossos socos, perdido dentro da camisa da patroa, toda em folhas, percorrendo na metade do «Jornal da Tarde», com os olhos turvos, os anúncios dos paquetes - não pode saber o que é uma vigorosa e real imagem do desalento!
Assim o deixei - e daí a pouco, estendido na minha enxerga também espartana, subia, através de um sonho jovial e erudito, ao planeta Vênus, onde se encontrava, entre os olmos e os ciprestes, num vergel, Platão e o Zé Brás, em alta camaradagem intelectual, bebendo vinho o vinho da Rética pelos copos de Torges! Travámos todos três bruscamente uma controvérsia sobre o século XIX. Ao longe, por entre uma floresta de roseiras mais altas que carvalhos, alvejavam os mármores de uma cidade e ressoavam cantos sacros. Não recordo o que Xenofonte sustentou acerca da civilização e do fonógrafo. De repente tudo foi turbado por fuscas nuvens, através das quais eu distinguia Jacinto, fugindo num burro que ele impelia furiosamente com os calcanhares, com uma vergasta, com berros, para os lados do Jasmineiro!
Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar Jacinto que, com as mãos sobre o peito, dormia placidamente no seu leito de granito - parti para Goães. E durante três quietas semanas, naquela vila onde se conservavam os hábitos e as idéias do tempo de el-rei D. Dinis, não soube do meu desconsolado amigo, que decerto fugira dos seus tetos esburacados e remergulhara na civilização. Depois, por uma abrasada manhã de Agosto, descendo de Goães, de novo trilhei a avenida das faias, e entrei o portão solarengo de Torges, entre o furioso latir dos rafeiros. A mulher de Zé Brás apareceu alvoraçada à porta da tulha. E a sua nova foi logo que o Sr. D. Jacinto (em Torges, o meu amigo tinha Dom) andava lá em baixo com o Sousa nos campos nos campos de Freixomil.
- Então, ainda cá está o Sr. D. Jacinto?
Sua «excelência» ainda estava em Torges - e sua "excelência" ficava para a vindima!... Justamente eu reparava que as janelas do solar tinham vidraças novas; e a um canto do pátio pousavam baldes de cal; uma escada de pedreiro ficara arrimada contra a varanda; e num caixote aberto, ainda cheio de palha de empacotar, dormiam dois gatos.
- E o Grilo apareceu?
- O Sr. Grilo está no pomar, à sombra.
- Bem! E as malas?
- O Sr. D. Jacinto já tem o seu saquinho de couro...
Louvado Deus! O meu Jacinto estava enfim provido de civilização! Subi contente. Na sala nobre onde o soalho fora composto e esfregado, encontrei uma mesa recoberta de oleado, prateleiras de pinho com louça branca de Barcelos e cadeiras de palhinha, orlando as paredes muito caiadas que davam uma frescura de capela nova. Ao lado, noutra sala, também de faiscante alvura, havia o conforto inesperado de três cadeiras de verga da Madeira, com braços largos e almofadas de chita: sobre a mesa de pinho, o papel almaço, o candeeiro de azeite, as penas de pato espetadas num tinteiro de frade, pareciam preparadas para um estudo calmo e ditoso das humanidades: e na parede, suspensa de dois pregos, uma estantezinha continha quatro ou cinco livros, folheados e usados, o D. Quixote, um Virgílio, uma História de Roma, as Crônicas de Froissart. Adiante era certamente o quarto de D. Jacinto, um quarto claro e casto de estudante, com um catre de ferro, um lavatório de ferro, a roupa pendurada de cabides toscos. Tudo resplandecia de asseio e ordem. As janelas fechados defendiam do sol de Agosto, que escaldava fora dos peitoris de pedra. Do soalho, borrifado de água, subia uma fresquidão consoladora. Num velho vaso azul um molho de cravos alegrava e perfumava. Não havia um rumor. Torges dormia no esplendor da sesta. E envolvido naquele repouso de convento remoto, terminei por me estender numa cadeira de verga junto à mesa, abri languidamente o Virgílio, murmurando:
Fortunate jacinthe! tu inter arva nota
Et fontes sacros, frigus captabis opacum
.
Já mesmo irreverentemente adormecera sobre o divino Bucolista, quando me despertou um brado amigo. Era o nosso amigo Jacinto. E imediatamente o comparei a uma planta, meio murcha e estiolada no escuro, que fora profusamente regada e revivera em pleno sol. Não corcoveava. sobre a sua palidez de supercivilizado, o ar da serra ou a reconciliação com a vida tinham espalhado um tom trigueiro e forte que o virilizava soberbamente. Dos olhos, que na cidade eu lhe conhecera sempre crepusculares, saltava agora um brilho de meio-dia, decidido e largo, que mergulhava francamente na beleza das coisas. Já não passava as mãos murchas sobre a face - batia com elas rijamente na coxa... Que sei eu? Era uma reencarnação. E tudo o que me contou, pisando alegrmente com os sapatos brancos no soalho, foi que se sentira, ao fim de três dias em Torges, como desanuviado, mandara comprar um colchão macio, reunira cinco livros nunca lidos, e ali estava...
- Para todo o Verão?
- Para todo o sempre! E agora, homem das cidades, vem almoçar uma trutas que eu pesquei, e compreende enfim o que é o céu.
As trutas eram com efeito celestes. E apareceu também uma salada fria de couve-flor e vagens, e um vinho branco de Azães... Mas quem condignamente vos cantará, comeres e beberes daquelas serras?
De tarde, finda e calma, passeamos pelos caminhos coleando da vasta quinta, que vai de vales a montes.
Jacinto parava a contemplar com carinho os milhos altos.
Com a mão espalmada e forte batia no tronco dos castanheiros, como nas costas de amigos recuperados.
Todo o fio de água, todo tufo de erva, todo o pé de vinha o ocupava como vidas filiais por que fosse responsável.
Conhecia certos melros que cantavam em certos choupos.
Exclamava enternecido:
- Que encanto, a flor do trevo!
À noite, depois de um cabrito assado no forno, a que mestre Horácio teria dedicado uma ode (talvez mesmo um carme heróico) conversamos sobre o Destino e a Vida. Eu citei, com discreta malícia, Schopenhauer e o Ecclesiastes... Mas Jacinto ergueu os ombros, com seguro desdém. A sua confiança nesses dois sombrios explicadores da vida desaparecera, e irremediavelmente, sem poder mais voltar, como uma névoa que o sol espalha. Tremenda tolice! Afirmar que a vida se compõe, meramente, de uma longa ilusão – é erguer um aparatoso sistema sobre um ponto especial e estreito da vida, deixando fora do sistema toda a vida restante, como uma contradição permanente e soberba. Era como se ele, Jacinto, apontando para uma urtiga, crescida naquele pátio, declarasse, triunfalmente: "Aqui está uma urtiga! Toda a quinta de Torges, portanto, é uma massa de urtigas." – Mas bastaria que o hóspede erguesse os olhos, para ver as searas, os pomares e os vinhedos!
De resto, desses dois ilustres pessimistas, um, o alemão, que conhecia ele da vida – dessa vida de que fizera, com doutoral majestade, uma teoria definitiva e dolente? Tudo o que pode conhecer quem, como este genial farsante, viveu cinqüenta anos numa soturna hospedaria de província, levantando apenas os óculos dos livros para conversar, à mesa–redonda, com os alferes da guarnição! E o outro, o israelita, o homem dos Cantares, o muito pedantesco rei de Jerusalém, só descobre que a vida é uma ilusão aos setenta e cinco anos, quando o poder lhe escapa das mãos trémulas, e o seu serralho de trezentas concubinas se torna ridiculamente supérfluo à sua carcaça frigida. Um dogmatiza funebremente sobre o que não sabe – e o outro sobre o que não pode. Mas que se dê a esse bom Schopenhauer uma vida tão completa e cheia como a de César, e onde estará o seu schopenhauerismo? Que se restitua a esse sultão, besuntado de literatura, que tanto edificou e professorou em Jerusalém, a sua virilidade – e onde estará o Ecclesiastes? De resto, que importa bendizer ou maldizer da vida? Afortunada ou dolorosa, fecunda ou vã, ela tem de ser vivida. Loucos aqueles que, para a atravessar, se embrulham desde logo em pesados véus de tristeza e desilusão, de sorte que na sua estrada tudo lhes seja negrume, não só as léguas realmente escuras, mas mesmo aquelas em que cintila um sol amável. Na Terra tudo vive – e só o homem sente a dor e a desilusão da vida. E tanto mais as sente, quanto mais alarga e acumula a obra dessa inteligência que o torna homem, e que o separa da restante Natureza, impensante e inerte. É no máximo da civilização que ele experimenta o máximo de tédio. A sapiência, portanto, este em recuar até esse honesto mínimo de civilização, que consiste em ter um teto de colmo, uma leira de terra e o grão para nela semear.

Em resumo, para reaver a felicidade, é necessário regressar ao Paraíso – e ficar lá, quieto, na sua folha de vinha, inteiramente desguarnecido de civilização, contemplando o anho aos saltos entre o tomilho, e sem procurar, nem com o desejo, a árvore funesta da Ciência!
Dixi!
Eu escutava, assombrado, este Jacinto novíssimo. Era verdadeiramente uma ressurreição no magnífico estilo de Lázaro. Ao surge et ambula que lhe tinham sussurrado as águas e os bosques de Torges, ele erguia-se do fundo da cova do Pessimismo, desembaraçava-se das suas casacas de Poole, et ambulabat, e começava a ser ditoso. Quando recolhi ao meu quarto, àquelas horas honestas que convêm ao campo e ao Otimismo tomei entre as minhas a mão já firme do meu amigo, e pensando que ele enfim alcançara a verdadeira realeza, porque possuía a verdadeira liberdade, gritei-lhe os meus parabéns à maneira do moralista de Tíbure:
Vive et regna, fortunate Jacinthe!
Daí a pouco, através da porta aberta que nos separava, senti uma risada fresca, moça, genuína e consolada. Era Jacinto que lia o D. Quixote. Oh bem–aventurado Jacinto!
Conservava o agudo poder de criticar, e recuperara o dom divino de rir!
Quatro anos vão passados. Jacinto ainda habita Torges.
As paredes do seu solar continuam bem caiadas, mas nuas. De Inverno enverga um gabão de briche e acende um braseiro. Para chamar o Grilo ou a moça, bate as mãos, como fazia Catão. Com os seus deliciosos vagares, já leu a Ilíada. Não faz a barba. Nos caminhos silvestres pára e fala com as crianças. Todos os casais da serra o bendizem.
Ouço que vai casar com uma forte, sã e bela rapariga de Goães. Decerto crescerá ali uma tribo, que será grata ao Senhor!
Como ele, recentemente, me mandou pedir livros da sua livraria (uma Vida de Buda, uma História da Grécia e as obras de S. Francisco de Sales) fui, depois destes quatro anos, ao Jasmineiro deserto. Cada passo meu sobre os fofos tapetes de Caramânia soou triste como num chão de mortos. Todos os brocados estavam engelhados, esgaçados. Pelas paredes pendiam, como olhos fora de órbitas, os botões eléctricos das campainhas e das luzes – e havia vagos fios de arame, soltos, enroscados, onde a aranha regalada e reinando tecera teias espessas. Na livraria, todo o vasto saber dos séculos jazia numa imensa mudez, debaixo de uma imensa poeira. Sobre as lombadas dos sistemas filosóficos alvejava o bolor: vorazmente a traça devastara as Histórias Universais: errava ali um cheiro mole de literatura apodrecida – e eu abalei, com o lenço no nariz, certo de que naqueles vinte mil volumes não restava uma verdade viva! Quis lavar as mãos, maculadas pelo contacto com estes detritos de conhecimentos humanos. Mas os maravilhosos aparelhos do lavatório, da sala de banho, enferrujados, perros, dessoldados, não largaram uma gota de água; e, como chovia nessa tarde de Abril, tive de sair à varanda, pedir ao céu que me lavasse.
Ao descer, penetrei no gabinete de trabalho de Jacinto e tropecei num montão negro de ferragens, rodas, lâminas, campainhas, parafusos... Entreabri a janela, e reconheci o telefone, o teatrofone, o fonógrafo, outros aparelhos, tombados das suas peanhas, sórdidos, desfeitos sob a poeira dos anos. Empurrei com o pé este lixo do engenho humano. A máquina de escrever, escancarada, com os buracos negros marcando as letras desarraigadas era como uma boca alvar e desdentada. O telefone parecia esborrachado, enrodilhado nas suas tripas de arame.
Na trompa do fonógrafo, torta, esbeiçada, para sempre muda, fervilhavam carochas. E ali jaziam, tão lamentáveis e grotescas, aquelas geniais invenções, que eu saí rindo, como de uma enorme facécia, daquele supercivilizado palácio.
A chuva de Abril secara: os telhados remotos da cidade negrejavam sobre um poente de carmesim e ouro. E, através das ruas mais frescas, eu ia pensando que este nosso magnífico século XIX se assemelharia um dia àquele Jasmineiro abandonado, e que os outros homens, com uma certeza mais pura do que é a Vida e a Felicidade, dariam como eu com o pé no lixo da supercivilização, e, como eu, ririam alegremente da grande ilusão que findara, inútil e coberta de ferrugem.
Àquela hora, decerto, Jacinto, na varanda em Torges, sem fonógrafo e sem telefone, reentrado na simplicidade, via, sob a paz lenta da tarde, ao tremeluzir da primeira estrela, a boiada recolher entre o canto dos boiadeiros.

RESUMO DE CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

A Cartomante Narra a história de Camilo, Vilela e Rita. Os dois primeiros eram melhores amigos; a segunda era esposa do segundo e amante do primeiro. Quando Camilo começa receber denúncias anônimas, diminui a freqüência das visitas ao amigo. Preocupada, Rita visita uma cartomante, fato que faz Camilo rir. Quando Vilela chama Camilo a sua casa ele vai preocupado, e passa antes na cartomante pensando que não tem nada a perder. Ela lhe assegura que nada vai dar errado e ele chega despreocupado a casa de Vilela, onde encontra Rita morta. Vilela então o mata. A Causa Secreta Fala de dois homens que, após um salvar a vida do outro e passar-se algum tempo, tornam-se sócios. Mas pouco a pouco um deles vai demonstrando tendências sádicas, torturando animais, fato que atordoa a esposa. Quando ela morre, Fortunato, o sádico, presencia o amigo beijar a testa da mulher e derreter-se em choro, saboreando o momento de dor do amigo que lhe traía. A Igreja do Diabo É uma nova idéia do diabo: fundar uma Igreja e organizar seu rebanho, tal qual Deus. Após comunicar Deus de seu futuro ato, vai à Terra e funda com muito sucesso uma Igreja que idolatra os defeitos humanos. Mas aos poucos os homens vão secretamente exercitando virtudes, Furioso, o Diabo vai falar com Deus, que lhe aponta que aquilo faz parte da eterna contradição humana. Anedota Pecuniária É uma pequena crítica a ganância. Nela um homem "vende" suas sobrinhas aos homens que as amam por causa de sua fascinação com o dinheiro.




      A Sereníssima República É uma crítica ao processo eleitoral, feito como um discurso de um cônego que afirma ter achado uma espécie de aranha que fala e criado uma sociedade delas, uma república chamada Sereníssima República. Ele escolhe como sistema de eleição um baseado no da República de Veneza, onde retirava-se bolas de um saco com o nome dos eleitos. Este sistema vai sendo fraudado pelas aranhas, corrigindo-se, adaptando-se e variando-se diversas vezes e de diversos modos, eternamente corrupto. Capítulo dos Chapéus É um conto onde aparece a frivolidade e ostentação da época de Machado. Mariana, após pedir ao marido que troque o seu simples chapéu, testemunha a sociedade (na famosa rua do Ouvidor) e acaba pedindo que ele permaneça com seu chapéu. D. Paula Conta sobre um casal que realiza uma separação temporária por ciúmes, com fundos, do marido. O caso é mediado pela tia da esposa, Dona Paula, que quando descobre quem é o outro, fica abalada. É o filho do homem com quem teve caso análogo, fato que deixa seus sentimentos bem abalados em relação ao caso. Fulano Beltrão é um homem que vai aos poucos se tornando mais um homem público que privado após receber elogios públicos e acaba deixando seu dinheiro para a posteridade e não a família. O Espelho Conta sobre um homem falando de sua opinião sobre a alma humana num grupo de amigos que realizam discussões metafísicas. Ele descreve uma situação de sua juventude onde, após ter sido engrandecido pelo recém-conquistado posto de alferes, encontra-se sozinho. Solitário, passa a ter medo até a que um dia veste-se com seu uniforme de alferes e encara o espelho, encontrando assim o outro lado de sua alma (sua opinião é que temos duas almas, uma externa que nos vigia e a nossa que vigia o exterior). Isso retira-o da solidão. Portanto, este conto envidencia o conflito entre a essência (a alma interior) e a aparência (alma exterior). Teoria do Medalhão É um pai aconselhando um filho no dia de seus 21 anos. Ele lhe diz que um futuro lhe espera, que pode ter várias carreiras diferentes, mas que devia ter uma de resguardo, preferencialmente a de medalhão. Para isto devia ter pouquíssimo conhecimento, originalidade, ironia, gosto ou qualquer idéia própria. E nisso disserta sobre a necessidade do filho de sempre manter-se neutro, usar e abusar de palavras sem sentido, conhecer pouco, ter vocabulário limitado, etc. Ao final, é uma bela ironia machadiana sobre como encontram-se os valores da sociedade de sua época. O Enfermeiro Conta sobre um homem que, a beira da morte, conta um caso de seu passado.
     Ele foi em 1860 ser enfermeiro de um velho e mau coronel, que acaba esganando alguns dias antes de partir por não mais o suportar. Quando abre-se o testamento ele é declarado herdeiro universal e distribui lentamente o dinheiro em esmolas. Enquanto isto se passa, vai lentamente se convencendo de sua inocência, apoiado pela sociedade que odiava o velho e suas ações que considera redentoras Pai Contra Mãe Cândido Neves, caçador de escravos fujões. Não o é por opção, apenas o é porque não agüenta qualquer outro emprego. Casa e passa a adquirir dívidas, com clientela cada vez menor; quando engravida a mulher, as dívidas aumentam. Depois de despejados vão morar em um quarto emprestado e o menino nasce. Após ceder às pressões da tia da esposa, Candinho vai por a criança na Roda dos enjeitados. Mas no caminho captura uma escrava, recebendo uma gorda recompensa, mantendo assim a criança. Mas a escrava estava grávida, e provavelmente abortou com os castigos recebidos, ficando a vida do filho de Candinho em troca da de outra Missa do Galo Fala de uma singular conversa entre uma senhora de 30 anos e um jovem 17, que tinha que manter-se acordado para acordar o amigo para irem à missa do galo. Eles conversam, ele apieda-se dela (o marido traía e ela resignava-se), admira-a e distrai-se. Por fim o amigo lhe chama, já que já havia passado da meia-noite e ele nunca mais tem outra conversa profunda com ela.

RESUMO DE A ROSA DO POVO

Publicado em 1945, Rosa do Povo é aclamado por inúmeros setores da crítica literária como a melhor obra de Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta da Literatura Brasileira e um dos três mais importantes de toda a Língua Portuguesa. Antes que se comece a visão sobre esse livro, necessária se faz, no entanto, uma recapitulação das características marcantes do estilo do grande escritor mineiro.
Desde o seu batismo de fogo em 1928, com a publicação do célebre "No Meio do Caminho", na Revista de Antropofagia, Drummond ficou conhecido como "o poeta da pedra". Ao invés de se sentir ofendido com tal apelido, de origem pejorativa, acaba assumindo-o, transformando-o em um dos símbolos de seu fazer literário.
De fato, obedecendo a um quê de Mallarmé em sua ascendência (principalmente no que se refere à idéia de poesia como algo ligado à mineral), a dureza e até a frieza da pedra marcam a poesia drummondiana, pois ela é dotada não de uma insensibilidade, mas de uma afetividade contida.

Torna-se, portanto, um dos pilares da poesia moderna (junto de Bandeira e João Cabral), afastando do lugar nobre de nossa literatura o melodrama, a emoção desbragada, descontrolada e descabelada que por muito tempo imperaram por aqui.
Dessa forma, vai sempre se mostrar um eu-lírico discreto ao sentir o seu círculo e o seu mundo até mesmo quando vaza críticas, muitas vezes feitas sob a perspectiva da ironia. Aliás, essa figura de linguagem é muito comum na estética do autor, pois pode ser entendida como uma forma torta de dizer as coisas. Não se deve esquecer que essa qualidade nos remete ao célebre adjetivo gauche (termo francês que significa torto, sem jeito, desajeitado), poderoso determinante da produção do autor.
Tal caráter está não só na linguagem (que muitas vezes não tem os elementos considerados óbvios para a poesia), mas também pode ser encontrado na maneira deslocada como se relaciona com o seu mundo, o que pode ser justificado pela sua origem, pois é um homem de herança rural, filho de fazendeiros, que acaba se encontrando no ambiente urbano (essa mudança de plano é uma característica encontrada em vários escritores modernistas, o que possibilita afirmar que Drummond, se não é o símbolo de sua geração, é o representante do próprio Brasil, que estava se tornando urbano, mas que carregava ainda uma forte herança rural.).
No entanto, ao invés de esse seu sem jeito tornar-se elemento pejorativo, acaba por dar-lhe uma potência fenomenal na análise social e existencial. Posto à margem do sistema, consegue ter uma visão mais clara e menos comprometida pela alienação dos que se preocupam em cumprir seus compromissos rotineiros. Eis o grande feito de Rosa do Povo.
Para a compreensão dessa obra, bastante útil é lembrar a data de sua publicação: 1945. Trata-se de uma época marcada por crises fenomenais, como a Segunda Guerra Mundial e, mais especificamente ao Brasil, a Ditadura Vargas. Drummond mostra-se uma antena poderosíssima que capta o sentimento, as dores, a agonia de seu tempo. Basta ler o emblemático "A Flor e a Náusea", uma das jóias mais preciosas da presente obra.

A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Nota-se no poema um eu-lírico mergulhado num mundo sufocante, em que tudo é igualado a mercadoria, tudo é tratado como matéria de consumo. Em meio a essa angústia, a existência corre o risco de se mostrar inútil, insignificante, o que justificaria a náusea, o mal-estar. Tudo se torna baixo, vil, marcado por "fezes, maus poemas, alucinações".
No entanto, em meio a essa clausura sócio-existencial (que pode ser representada pela imagem, na terceira estrofe, do muro), o poeta vislumbra uma saída. Não se trata de idealismo ou mesmo de alienação - o poeta já deu sinais claros no texto de que não é capaz disso. Ou seja, não está imaginando, fantasiando uma mudança - ela de fato está para ocorrer, tanto que já é vislumbrada na última estrofe, com o anúncio de nuvens avolumando-se e das galinhas em pânico. É o nascimento da rosa, símbolo do desabrochar de um mundo novo, o que mantém o poeta vivo em meio a tanto desencanto.
Dois pontos ainda merecem ser observados no presente poema. O primeiro é o fato de que ele, além de ser o resumo das grandes temáticas da obra, acaba por explicar o seu título. Basta notar que, conforme dito no parágrafo anterior, a rosa indica o desabrochar de uma nova realidade, tão esperada pelo poeta.
E a expressão "do povo" pode estar ligada a uma tendência esquerdista, socialista, muito presente em vários momentos do livro e anunciadas pela crítica ao universo capitalista na primeira ("Melancolias, mercadorias espreitam-me.") e terceira estrofes ("Sob a pele das palavras há cifras e códigos."). O novo mundo, portanto, teria características socialistas.
O outro item é visto pelo estreito relacionamento que "A Flor e a Náusea" estabelece com o poema a seguir, "Áporo", um dos mais estudados, densos, complexos e enigmáticos da Literatura Brasileira.

ÁPORO

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
Note que a narrativa parece ser tirada de "A Flor e a Náusea": um inseto, o áporo, cava a terra sem achar saída. Assemelha-se ao eu-lírico do outro poema, que se via diante de um muro e da inutilidade do discurso. No entanto, Drummond continua discursando, vivendo, assim como o inseto continua cavando. Então, do impossível surge a transformação: do asfalto surge a flor, da terra-labirinto-beco surge a orquídea.
Há algo aqui que faz lembrar o poema "Elefante", também no mesmo volume. Da mesma forma como Drummond fabrica seu brinquedo, mandando-o para o mundo, de onde retorna destruído (mas no dia seguinte o esforço se repete), o eu-lírico de "A Flor e a Náusea" sobrevive em seu cotidiano nulo e nauseante e o áporo perfura a terra. É a temática do "no entanto, continuamos e devemos continuar vivendo", tão comum em vários momentos de A Rosa do Povo.
"Áporo", portanto, é um poema tão rico que pode ter outras leituras, além dessa de teor existencial. Há também, por exemplo, a interpretação política, que enxerga uma referência a Luís Carlos Prestes ("presto se desata"), que acabara de ser libertado pelo regime ditatorial. A figura histórica pode ser vista, portanto, como um áporo buscando caminho na pátria sem saída que se tornou o Brasil na Era Vargas.
Ainda assim, existe quem veja no texto um mero - e inigualável - exercício lúdico, em que as palavras são contempladas, manipuladas, transformadas. Basta lembrar, por exemplo, que "áporo", além de ser a designação do inseto cavador, é também um termo usado em filosofia e matemática para uma situação, um problema sem solução, sem saída. Além disso, a essência etimológica da palavra inseto é justamente as letras "s" e "e", diluídas no corpo do texto.

Observe como tal pode ser esquematizado:
Um inSEto cava
cava SEm alarme
perfurando a terra
SEm achar EScape.
Que faZEr, ExauSto,
Em paíS bloqueado,
enlaCE de noite
raiZ E minério?
EiS que o labirinto
(oh razão, miStÉrio)
prESto SE dESata:
em verdE, Sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-SE.
Note que a essência do áporo, do inseto, vai se movimentando em todo o poema, transformando-se, até o ápice do último verso da terceira estrofe. É o momento da transformação e da iniciação, já anunciadas na segunda estrofe na aliteração do /s/ e do /t/ e da assonância do /e/ que acabam criando a forma verbal "encete" (ENlaCE de noiTE), que significa principiar, mas que possui também uma forte aproximação sonora com "inseto". A mutação final virá no último verso: o áporo inseto se transforma em áporo orquídea ("áporo" é também o nome de um determinado tipo de orquídea), a flor que se desabrocha para a libertação.
Tanto que a raiz SE está prestes a se libertar, pois virou a forma pronominal "se" (e, portanto, com relativa vida própria) que encerra o poema. Tal trabalho com a linguagem é a base de todo texto poético, como é defendido pelo próprio Drummond em "Procura da Poesia", transcrito abaixo:

PROCURA DA POESIA

Não faça versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é a música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de
espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
Como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Esse antológico poema é dividido em duas partes. Na primeira apresentam-se proibições sobre o que não deve ser a preocupação de quem estiver pretendendo fazer poesia. Sua matéria-prima, de acordo com o raciocínio exibido, não são as emoções, a memória, o meio social, o corpo.

Na segunda parte explica-se qual é a essência da poesia: o trabalho com a linguagem. O poema pode até apresentar temática social, existencial, laudatória, emotiva, mas tem de, acima de tudo, dar atenção à elaboração do texto, ou seja, saber lidar com a função poética da linguagem.
A riqueza de A Rosa do Povo não se restringe, porém, às temáticas abordadas. Há uma profusão de outros assuntos, como a abordagem da cidade natal ("Nova Canção do Exílio", em que há uma reinterpretação do "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias), a observação do problemático cotidiano social ("Morte do Leiteiro", em que o protagonista, que dá nome ao poema, acaba sendo assassinado em pleno exercício de sua função por ser confundido com um ladrão, o que possibilita uma crítica às relações sociais esgarçadas pelo medo), a rememoração dos parentes
("Retrato de Família", em que o eu-lírico percebe a viagem através da carne e do tempo de uma constante eterna ligada à idéia de família) e o amor como experiência difícil, o famoso amar amaro ("Caso de Vestido", em que o eu-lírico, uma mulher, narra o sofrimento por que passou quando da perda do seu marido e quando também da recuperação dele).
Em suma, Rosa do Povo é obra monumental que merece não apenas ser lida para um vestibular, mas fruída para se tornar uma das grandes experiências de nossa existência.