terça-feira, 5 de julho de 2011

RESUMO UEPG - FERREIRA GULLAR - MUITAS VOZES



  Muitas Vozes, lançado em 1999, apresenta um Ferreira Gullar ainda consciente da necessidade de renovação, e capaz para tanto, fundindo diversos recursos estéticos que podem ser lidos esparsamente desde os primeiros passos do que viria a ser Toda Poesia. Pode-se afirmar, por esse prisma, que as "muitas vozes" a que se refere o título são as muitas vozes que Gullar usou durante sua vida para construir-se poeta:     Meu     poema                                             
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido"                                                                                                                                                                         
    E o leitor, de ouvidos apurados, poderá distinguir em Muitas Vozes a passagem inconfundível de ritmos e quebras, formas e deformações, que mais de uma vez incidiram no que se poderia, com algum receio, chamar de "poética gullariana", e que tem deixado na poesia brasileira seus epígonos.
    A poesia de Gullar equilibra, de forma muito peculiar, a racionalidade e os vôos imaginativos do autor, pois, por mais que a imagem do poema seja "desregrada", vem sempre à tona uma espécie de raciocínio sobressaído da disposição organizada das idéias, e a seqüência que constituem aponta para uma clareza que o tempo todo é traída pelo escorregadio movimento da imagem central, como no poema "Thereza", em que a maneira como são cortadas as linhas multiplica seu objeto.
    Repare-se que Gullar deixa em aberto as linhas de como se indicando que a partir dali surge um outro espaço interpretativo. E é nesse esforço para harmonizar raciocínio e imaginação que os poemas de Gullar assentam as inquietantes marcas que o distinguem da poesia parnasianamente previsível com que têm surpreendido alguns autores de sua geração.
O livro Muitas Vozes, de Ferreira Gullar, considerado o poeta vivo mais importante no Brasil, reúne 54 poemas sobre morte, vida, infância e sexo.
    Presente do poeta para seus leitores e admiradores meses antes de completar 70 anos, Muitas vozes, revela uma mudança de tom na obra de Gullar. Mesmo que A luta corporal e Poema sujo tratassem de questões completamente diferentes, têm uma coisa em comum que é a fúria. Ela está presente em todos os meus livros anteriores. Mas, neste, está amainada. É um livro mais reflexivo, em que a temática da morte está muito presente, não como medo mas como reflexão, comenta.
    Muitas vozes pode ser lido como a obra de maturidade de um autor que desde muito cedo despontou como uma voz singular na poesia brasileira.
    Na obra ouve-se o eco de toda essa experiência acumulada ao longo de quase sete décadas. Da eterna luta corporal com a palavra presente em "Sob a espada" até a política expressa em versos de "Queda de Allende", o novo livro apresenta um Gullar continuamente renovado.
    Gullar volta a nos oferecer a melhor poesia do Brasil, num estilo transparente e despido de qualquer pedantismo universitário, fruto da cristalização de suas experiências e linguagens. Na obra, Gullar explora elementos do concretismo, de versos espalhados e sem pontuação. Os poemas giram muito em torno da morte. É que neste espaço de tempo Gullar perdeu a mulher, Thereza, e um dos filhos, Marcos. No livro Muitas Vozes, são feitas referências claras a essas perdas em dois poemas em especial.
    No curto poema "Thereza", já citado e transcrito, Gullar expressa a perda da mãe de seus filhos.
    A morte aparece sempre como reflexão. Ele traça um paralelo entre a vida e a morte. E quando fala sobre a vida, sempre faz referência ao sexo. Esta observação pode ser conferida no poema "Definição da Moça", no qual Gullar faz indagações a respeito da personagem declamada: Como desnudá-la quando está vestida se está mais despida do que quando nua?.
    A atual poesia de Gullar perdeu muito daquela impureza agressiva e daquele ódio amoroso que animavam seus versos. Não temos mais aquele seu experimentalismo ousado e aquele seu ardor ideológico. Não temos mais aquela sua poesia exacerbada, dura, e de uma ternura incontrolável. Não temos mais aquela intolerância a nos cutucar. Aquela sua inquietação.
    Muitas vozes poucas vezes consegue manter o nível de radicalidade que é tudo o que se esperaria de mais um trabalho de Ferreira Gullar. Mas há momentos em que ainda vislumbramos o Gullar vertiginoso e veloz.
    "Coito", por exemplo, é um bonito poema, em que os movimentos do amor, tão prosaicos e conhecidos, se tornam supervisíveis num "bicho" que se desenrola, desliza, envolve, beija, fende e se desenfia.
    Outro poema, "Nova concepção da morte", são dísticos formados por alexandrinos escandidos e rimados com talento singular, domínio perfeito da técnica, espontaneidade adquirida, naturalidade conquistada com a prática.
    "Nasce o poeta" é outro bom momento, uma poética em que No princípio / era o verso / alheio, e em que o poema não diz / o que a coisa é // mas diz outra coisa / que a coisa quer ser.
    "Cantiga para não morrer", um dos belos exemplos do lirismo depurado aliado à solidariedade e empatia para o social, que estão sempre presentes na obra de Gullar. Muitas Vozes ao gênero que o consagrou como um dos mais importantes autores brasileiros. Presente do poeta para seus leitores e admiradores meses antes de completar 70 anos, Muitas Vozes revela uma mudança de tom na obra de Gullar. "Mesmo que A luta corporal e Poema sujo tratassem de questões completamente diferentes, têm uma coisa em comum que é a fúria. Ela está presente em todos os meus livros anteriores. Mas, neste, está amainada. É um livro mais reflexivo, em que a temática da morte está muito presente, não como medo mas como reflexão", comenta.
    Muitas Vozes pode ser lido como a obra de maturidade de um autor que desde muito cedo despontou como uma voz singular na poesia brasileira. Nascido no Maranhão em 10 de setembro de 1930 como José Ribamar Ferreira, já sob o pseudônimo de Ferreira Gullar, o poeta lançou seu primeiro livro, Roçzeiral, aos 19 anos. Tinha apenas 24 quando publicou A luta corporal, uma obra radical que abriu caminho para a poesia concreta no país. "No começo, havia a busca por uma linguagem que transcendesse o discurso lógico, que fosse além da própria poesia como era feita até então, e que terminou por implodir a linguagem. Como conseqüência dessa implosão, veio a poesia concreta", reflete hoje o poeta.
    Cinco anos mais tarde, Ferreira Gullar romperia com o movimento para criar outro, o neoconcretismo, esboçado no ensaio Teoria do não-objeto e que culminou com o famoso poema enterrado no chão.
    Uma nova virada aconteceria no início dos anos 60. Fiel ao clima da época, Ferreira Gullar voltou-se para a cultura popular, impregnando-se da linguagem do cordel. Da época, datam João Boa-Morte e Quem matou Aparecida, além das peças Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, com Oduvaldo Vianna Filho e Dr. Getúlio, com Dias Gomes. Presidente do CPC da Une quando aconteceu o golpe militar, Ferreira Gullar se exilou na Argentina em 1971.
    "Abandonei o neoconcretismo porque considerei que essa experiência estava esgotada. Isso coincidiu com uma virada da política brasileira, com a posse de João Goulart. Empolguei-me pela possibilidade de transformação social e minha poesia acompanhou isso", recorda Gullar. Segundo o poeta, essa reconciliação com a linguagem coloquial foi fundamental para definir novos rumos para sua obra. "Minha poesia de hoje é desdobramento disso. Costumo dizer que a poesia nasce da prosa. O que existe é a linguagem de todos. Uso e abuso dela, até da palavra chula. Nunca busquei o poema puro. Não me preocupo com experimentalismos ou estéticas verbais. Quero um poema que nasça da vida", afirma.
    Foi no exílio que Ferreira Gullar escreveu seu livro de maior repercussão, Poema sujo, De volta ao Brasil, publicou uma série de ensaios sobre artes plásticas, sua segunda paixão, como Argumentação contra a morte da arte, além de uma Antologia poética. Barulhos, editado em 87, foi seu último livro de poemas. No ano seguinte, escreveu suas memórias em Rabo de foguete.
    "Quando terminei Barulhos, tive a sensação nítida de que tinha me esgotado e não voltaria mais a escrever. Imaginei que a fonte tinha secado. Perdi a motivação e me senti vazio. Passava os meses sem ter vontade de escrever", conta Gullar. "Cheguei a passar um ano sem produzir um poema."
    Mas, um belo dia, a fonte voltou a jorrar. Num quarto de hotel de Nova Iorque o poeta retomou a palavra. "Meu Pai" é dessa leva. A produção seria interrompida várias vezes até que, em 1994, Gullar conheceu sua atual mulher, a jovem poeta Cláudia Ahimsa, na feira do livro de Frankfurt dedicada ao Brasil. "Isso para mim foi um renascer. Passei a escrever com muito mais freqüência. Foi um encontro inspirador", revela, sem medo de parecer um poeta romântico e comum.
    Em Muitas Vozes ouve-se o eco de toda essa experiência acumulada ao longo de quase sete décadas. Da eterna luta corporal com a palavra presente em "Sob a espada" até a política expressa em versos de "Queda de Allende", o novo livro apresenta um Gullar continuamente renovado.
    "Eu mesmo não acredito que estou chegando aos 70 anos. Nunca pensei que chegaria lá. Para mim, ano 2000 era algo impensável", afirma. No entanto, a idade lhe reservou boas surpresas, junto com a descoberta do amor tardio. "Nunca pensei que 70 anos fossem isso. Estou totalmente saudável, em plena vida", alegra-se o poeta, que parou de fumar há 10 anos e cortou a carne vermelha, as frituras e gorduras do seu cardápio, para dar uma ajudinha à sorte. "Não gosto de contar vantagem não. A gente sabe que é mortal, mas nem sempre se lembra ... felizmente."

Ferreira Gullar nasceu em São Luís, Maranhão, no dia 10 de setembro de 1930. Estréia na literatura em 1949, com a obra Um pouco acima do chão. Iniciou seu trajeto poético no Concretismo, passando depois a uma opção participante , de uso da poesia como denúncia e crítica. Com a decretação do AI-5, é preso, juntamente com Gil e Caetano. Gullar luta para captar, através da poesia, sua experiência pessoal, desde o início marcada por uma consciência social e estética. Desse modo, o principal traço de toda a sua obra é a busca da expressão, o corpo-a-corpo com a poesia. O poeta busca o sentido da poesia nas palavras, nos objetos, nas ruas da cidade, na noite, no sofrimento do povo, no cotidiano. O caminho sinuoso até hoje percorrido pelo poeta traduz algumas das importantes crises da atividade artística brasileira, nas últimas décadas, com suas mudanças, rupturas e retomadas.

Comentário: Em “Muitas Vozes” (1999), Ferreira Gullar reúne a produção dos últimos doze anos e demonstra que recorta as cenas do cotidiano com reflexões agudas, traçando imagens ao mesmo tempo delicadas e provocadoras.
Segundo o próprio autor, a fúria presente em todos os seus livros anteriores, neste está amainada. É um livro mais reflexivo, em que a temática da morte está muito presente, não como medo mas como reflexão.
Ouve-se o eco de toda experiência do poeta acumulada ao longo de quase sete décadas. Foi preciso muita coisa passar: o exílio, depois a morte rondar perto, familiar e sem ênfase; os mortos restarem no abandono do chão impenetrável; o silêncio crescer dos ausentes ao cosmos.
Seres que foram parte de uma vida e personagens de um romance e agora são também motivos poéticos. O poeta traz essas figuras não pela mão, mas pela voz, como vozes enlaçadas à sua voz que dá forma aos poemas, à qual se somam por vezes as vozes de outros poetas: Gonçalves Dias, Bandeira, Drummond, Rilke.

Muitas Vozes

Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.
(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:

             (...)

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.

O diálogo interrompido com os mortos: Thereza, Visita, Internação, Meu Pai, Evocação do Silêncio, O Morto e o Vivo.

Thereza

Sem apelo
              no vórtice do
dia no
abandono do chão na
lâmina da
luz feroz

          fora da vida

desfaz-se agora
a minha doída
desavinda companheira

Visita

no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era  o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo

                 Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando

Meu Pai

meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

O Morto e o Vivo

Inútil pedir
perdão
             dizer
que o traz
no coração

O morto não ouve

Poemas meditativos, de auto-reflexão, de reconhecimento das mudanças e dos limites de si mesmo e da voz poética: Nasce o Poeta, Adormecer, Tato, Reflexão, Aprendizado, Lição de um Gato Siamês, Não-Coisa, Isto e Aquilo.

Tato

Na poltrona da sala
as mãos sob a nuca
    sinto nos dedos
    a dureza do osso da cabeça
    a seda dos cabelos
    que são meus

A morte é uma certeza invencível

   mas o tato me dá
   a consistente realidade
  de minha presença no mundo

 Reflexão

Está fora
de meu alcance
o meu fim

Sei só até
onde sou

contemporâneo
de mim

Aprendizado

Quando jovem escrevi
num poema ‘começo
a esperar a morte’
e a morte era então
um facho
a arder vertiginoso, os dias
um heróico consumir-se
através de
esquinas e vaginas

Agora porém
depois de
tudo
sei que
apenas
morro

sem ênfase

Lição de um Gato Siamês

Só agora sei
que existe a eternidade:
é a duração
       finita
       da minha precariedade

O tempo fora
de mim
              é relativo
mas não o tempo vivo:
esse é eterno
porque afetivo
- dura eternamente
   enquanto vivo

E como não vivo
além do que vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo)

Não-Coisa

O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

           (...)

Isto e Aquilo

você é seu corpo
sua voz seu osso

você é seu cheiro
e o cheiro do outro

o prazer do beijo
você é seu gozo

o que vai morrer
quando o corpo morra

mas é também aquela
alegria (verso,
melodia)
que, intangível, adeja
acima
            do que a morte beija.

RESUMO UEPG - Dois irmãos de Milton Hatoum




Milton Hatoum (Manaus, 19 de agosto de 1952) é um escritor, tradutor e professor brasileiro. Hatoum é considerado um dos grandes escritores vivos do Brasil.
Descendente de libaneses, ensinou literatura na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e na Universidade da Califórnia em Berkeley. Escreveu quatro romances: Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte (esse último vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura e todos os três primeiros ganhadores do Prêmio Jabuti de melhor romance) e Órfãos do Eldorado. Seus livros já venderam mais de 200 mil exemplares no Brasil e foram traduzidos em oito países, como a Itália, os Estados Unidos, a França e a Espanha.
Hatoum costuma em suas obras falar de lares desestruturados com uma leve tendência política. Em suas duas últimas obras, Dois Irmãos e Cinzas do Norte, Milton Hatoum fez uma sutil crítica ao regime militar brasileiro.
Milton Hatoum volta ao romance com um drama familiar em cujo centro estão os dois filhos de imigrantes libaneses: os gêmeos Yaqub e Omar. O enredo do romance trata, basicamente, do (não) relacionamento entre os irmãos.

O ponto de onde é feita a narração é uma posição bastante privilegiada e natural para o desenvolvimento da história. O narrador é um personagem, coisa que não sabemos de imediato, mas no desenvolvimento do livro. O narrador é, na verdade, o filho bastardo de um dos gêmeos com a empregada que mora no fundo da casa dos pais deles. Essa posição próxima, porém não íntima, e o interesse do narrador em descobrir quem é seu pai, o torna o narrador ideal para este romance.

Narrado em primeira pessoa, a história se passa em Manaus de 1910 a 1960. Os dois irmãos nunca se entendem, até que Yaqub é obrigado a ir para o Líbano. Quando volta, cinco anos depois, sente-se deslocado dentro de sua própria família, enquanto as intrigas continuam. Aliás, o sentimento de deslocamento é o que sustenta a narrativa, e traz o drama familiar para a esfera do universal.

Segundo Hatoum, o imigrante é um sujeito dividido, sofre de uma espécie de dualidade do lar, da pátria. Nesse sentido, os dois irmãos funcionam como uma metáfora dessa dualidade. Um se identificando mais com o Brasil e o outro se sentindo estrangeiro, diferente, muitas vezes sendo referido apenas como “o outro” pelo Narrador, que, por sua vez, também é um deslocado, filho da empregada com um dos gêmeos, mas sem saber qual deles.

Entre esse duelo fraternal, Hatoum ainda constrói a dificuldade de um homem apaixonado pela esposa, que perde a atenção dela para os filhos; um filho bastardo que tenta descobrir qual dos gêmeos é seu pai; a história do imigrante de origem árabe no Brasil e a expansão comercial da região norte; e o retrato de uma sociedade pequeno burguesa, que se mostra tão previsível no norte do Brasil, quanto na França, dos escritores de grande influência para o autor manauara, Flaubert e Balzac (juntamente ao norte-americano William Faulkner).

Esses temas vão se dissolvendo com o passar do tempo da história. Mas não perdendo em importância ou se resolvendo e sim, se entranhando cada vez mais à narrativa.

Uma tensão leve é a convidada cativa do texto de Hatoum, que se faz presente em todo o livro. As páginas a serem lidas vão rareando nas mãos e as soluções são, no máximo, indicadas.

Aliando essa tensão à fluência textual (no melhor estilo de seus autores de influência), Hatoum nos conta uma história isenta de lições moralizantes ou advertências.

O que nos toma ao final da leitura é um sentimento de incompletude e incerteza. Espaços em aberto. Muitas perguntas, muitas possibilidades, poucas certezas.

Esse espaço de incerteza é que fascina no momento da leitura e não frustra ao deixar perguntas. É a máquina narrativa de Hatoum, funcionando direitinho.

Enredo

No início do século XX, Manaus, a capital da borracha, recebeu estrangeiros como o jovem Halim, aprendiz de mascate, e Zana, uma menina que chegou sob a asa do pai, o viúvo Galib, dono de um restaurante perto do porto. Halim e Zana vão gerar três filhos: Rânia, que não vai casar nunca, e os gêmeos Yaqub e Omar, permanentemente em conflito. O casarão que habitam é servido por Domingas, a empregada índia, e mais tarde também pelo filho de pai desconhecido que ela terá. Esse menino — o filho da empregada — será o narrador. Trinta anos depois dos acontecimentos, ele conta os dramas que testemunhou calado.

Omar é o beberrão boêmio, mimado, conquistador e revolucionário. Yaqub é o engenheiro que construiu sua vida independentemente de ajuda, magoado com a família, tímido, conservador e que se muda de Manaus (cenário da história) para São Paulo.

Essa diferença de personalidade faz parte do pacote ‘história de irmãos gêmeos’. Assim como a constante competição entre eles.

Dois irmãos é a história de como se faz e se desfaz a casa de Halim e Zana. Apaixonado pela mulher, depois do nascimento dos filhos Halim se condena à nostalgia dos tempos em que não era pai, em que não precisava disputar o amor de Zana, em que os dois tinham todo o tempo do mundo para deitar na rede do alpendre e se entregar aos prazeres sensuais. Pelo que nos conta o narrador, Halim estará sempre à espera da decisão mais acertada diante dos abismos familiares: a desmedida dedicação de Zana a Omar, seu filho preferido; o trauma de Yaqub, o filho que, adolescente, foi separado da família supostamente para amenizar os conflitos com Omar; a relação amorosa entre os gêmeos e a irmã, Rânia. De Domingas, com quem compartilhava o quartinho nos fundos do quintal, o narrador nos diz que esta é uma mulher que não fez escolhas. Aparentemente, não escolheu nem mesmo o pai de seu filho.

Milton Hatoum faz os dramas da casa estenderem-se à cidade e ao rio: Manaus e o Negro transformam-se em símbolos das ruínas e da passagem do tempo. E, pela voz de um narrador solitário, revive também os tempos sombrios em que as praças manauaras foram ocupadas por tanques e homens de verde. Esses tempos foram responsáveis pelo destino trágico de um grande personagem do livro: o professor Antenor Laval.

Trecho escolhido

Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo da casa. O almoço era servido às onze, comida simples, mas com sabor raro. Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava a horta, cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador. No Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrinxã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e servia-o com molho de gergelim. Entrava na sala do restaurante com a bandeja equilibrada na palma da mão esquerda; a outra mão enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de mesa em mesa e Zana oferecia guaraná, água gasosa, vinho. O pai conversava em português com os clientes do restaurante: mascateiros, comandantes de embarcação, regatões, trabalhadores do Manaus Harbour. Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças remotas e o mais recente: uma dor ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os caloteiros saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, fumavam, e as vozes prolongavam o ritual, adiando a sesta.

1. (UFAM) A respeito do personagem Adamor, o Perna-de-Sapo, do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, fazem-se as seguintes afirmativas:

I. Em 1943 descobriu os restos de um avião Catalina que desaparecera nas florestas do Purus e salvou da morte o aviador Binford.

II. Descobriu, a pedido de Zana, o paradeiro de Omar, que fugira de casa com uma mulher chamada Pau-Mulato e se escondera num barquinho atrás do Mercado Adolpho Lisboa.

III. Antes de se tornar coveiro, era um peixeiro que vendia de porta em porta e sofria com as implicâncias da índia Domingas.

IV. Ao sair de Lábrea com uma das pernas paralisada, veio para Manaus, onde passou a morar em condições humilhantes numa palafita.

Estão corretas:

A) Apenas II e IV
B) I, II e IV
C) Apenas I e III
D) II, III e IV
E) Todas as afirmativas

2. (UFAM) Ainda sobre o romance Dois Irmãos, é correto afirmar, a propósito do enredo:

A) Para ajudar Halim a conquistar Zana, Abbas escreveu um gazal com quinze dísticos, que o pretendente fingiu esquecer na mesa do restaurante Biblos, de propriedade do viúvo Galib, pai da moça.
B) Tal como em Esaú de Jacó, de Machado de Assis, observamos o tema dos gêmeos, que foi, porém, tratado de forma diferente, de vez que os dois irmãos não são inimigos.
C) Domingas, a mãe de Nael, após ter ficado órfã, veio do Alto Rio Negro trazida por Halim, que nessa época trabalhava como regatão.
D) A antiga casa de Halim e Zana foi vendida para uma multinacional, após a instalação da Zona Franca, e Nael e Rânia, sua tia, se mudaram para um conjunto habitacional moderno.
E) Uma das pretendentes a casar com Yaqub se chamava Dália, a Mulher Prateada, que, no entanto, não foi capaz de enfrentar
o ciúme possessivo que Zana sentia em relação ao filho.Parte superior do formulário
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