terça-feira, 5 de julho de 2011

RESUMO UEPG - FERREIRA GULLAR - MUITAS VOZES



  Muitas Vozes, lançado em 1999, apresenta um Ferreira Gullar ainda consciente da necessidade de renovação, e capaz para tanto, fundindo diversos recursos estéticos que podem ser lidos esparsamente desde os primeiros passos do que viria a ser Toda Poesia. Pode-se afirmar, por esse prisma, que as "muitas vozes" a que se refere o título são as muitas vozes que Gullar usou durante sua vida para construir-se poeta:     Meu     poema                                             
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido"                                                                                                                                                                         
    E o leitor, de ouvidos apurados, poderá distinguir em Muitas Vozes a passagem inconfundível de ritmos e quebras, formas e deformações, que mais de uma vez incidiram no que se poderia, com algum receio, chamar de "poética gullariana", e que tem deixado na poesia brasileira seus epígonos.
    A poesia de Gullar equilibra, de forma muito peculiar, a racionalidade e os vôos imaginativos do autor, pois, por mais que a imagem do poema seja "desregrada", vem sempre à tona uma espécie de raciocínio sobressaído da disposição organizada das idéias, e a seqüência que constituem aponta para uma clareza que o tempo todo é traída pelo escorregadio movimento da imagem central, como no poema "Thereza", em que a maneira como são cortadas as linhas multiplica seu objeto.
    Repare-se que Gullar deixa em aberto as linhas de como se indicando que a partir dali surge um outro espaço interpretativo. E é nesse esforço para harmonizar raciocínio e imaginação que os poemas de Gullar assentam as inquietantes marcas que o distinguem da poesia parnasianamente previsível com que têm surpreendido alguns autores de sua geração.
O livro Muitas Vozes, de Ferreira Gullar, considerado o poeta vivo mais importante no Brasil, reúne 54 poemas sobre morte, vida, infância e sexo.
    Presente do poeta para seus leitores e admiradores meses antes de completar 70 anos, Muitas vozes, revela uma mudança de tom na obra de Gullar. Mesmo que A luta corporal e Poema sujo tratassem de questões completamente diferentes, têm uma coisa em comum que é a fúria. Ela está presente em todos os meus livros anteriores. Mas, neste, está amainada. É um livro mais reflexivo, em que a temática da morte está muito presente, não como medo mas como reflexão, comenta.
    Muitas vozes pode ser lido como a obra de maturidade de um autor que desde muito cedo despontou como uma voz singular na poesia brasileira.
    Na obra ouve-se o eco de toda essa experiência acumulada ao longo de quase sete décadas. Da eterna luta corporal com a palavra presente em "Sob a espada" até a política expressa em versos de "Queda de Allende", o novo livro apresenta um Gullar continuamente renovado.
    Gullar volta a nos oferecer a melhor poesia do Brasil, num estilo transparente e despido de qualquer pedantismo universitário, fruto da cristalização de suas experiências e linguagens. Na obra, Gullar explora elementos do concretismo, de versos espalhados e sem pontuação. Os poemas giram muito em torno da morte. É que neste espaço de tempo Gullar perdeu a mulher, Thereza, e um dos filhos, Marcos. No livro Muitas Vozes, são feitas referências claras a essas perdas em dois poemas em especial.
    No curto poema "Thereza", já citado e transcrito, Gullar expressa a perda da mãe de seus filhos.
    A morte aparece sempre como reflexão. Ele traça um paralelo entre a vida e a morte. E quando fala sobre a vida, sempre faz referência ao sexo. Esta observação pode ser conferida no poema "Definição da Moça", no qual Gullar faz indagações a respeito da personagem declamada: Como desnudá-la quando está vestida se está mais despida do que quando nua?.
    A atual poesia de Gullar perdeu muito daquela impureza agressiva e daquele ódio amoroso que animavam seus versos. Não temos mais aquele seu experimentalismo ousado e aquele seu ardor ideológico. Não temos mais aquela sua poesia exacerbada, dura, e de uma ternura incontrolável. Não temos mais aquela intolerância a nos cutucar. Aquela sua inquietação.
    Muitas vozes poucas vezes consegue manter o nível de radicalidade que é tudo o que se esperaria de mais um trabalho de Ferreira Gullar. Mas há momentos em que ainda vislumbramos o Gullar vertiginoso e veloz.
    "Coito", por exemplo, é um bonito poema, em que os movimentos do amor, tão prosaicos e conhecidos, se tornam supervisíveis num "bicho" que se desenrola, desliza, envolve, beija, fende e se desenfia.
    Outro poema, "Nova concepção da morte", são dísticos formados por alexandrinos escandidos e rimados com talento singular, domínio perfeito da técnica, espontaneidade adquirida, naturalidade conquistada com a prática.
    "Nasce o poeta" é outro bom momento, uma poética em que No princípio / era o verso / alheio, e em que o poema não diz / o que a coisa é // mas diz outra coisa / que a coisa quer ser.
    "Cantiga para não morrer", um dos belos exemplos do lirismo depurado aliado à solidariedade e empatia para o social, que estão sempre presentes na obra de Gullar. Muitas Vozes ao gênero que o consagrou como um dos mais importantes autores brasileiros. Presente do poeta para seus leitores e admiradores meses antes de completar 70 anos, Muitas Vozes revela uma mudança de tom na obra de Gullar. "Mesmo que A luta corporal e Poema sujo tratassem de questões completamente diferentes, têm uma coisa em comum que é a fúria. Ela está presente em todos os meus livros anteriores. Mas, neste, está amainada. É um livro mais reflexivo, em que a temática da morte está muito presente, não como medo mas como reflexão", comenta.
    Muitas Vozes pode ser lido como a obra de maturidade de um autor que desde muito cedo despontou como uma voz singular na poesia brasileira. Nascido no Maranhão em 10 de setembro de 1930 como José Ribamar Ferreira, já sob o pseudônimo de Ferreira Gullar, o poeta lançou seu primeiro livro, Roçzeiral, aos 19 anos. Tinha apenas 24 quando publicou A luta corporal, uma obra radical que abriu caminho para a poesia concreta no país. "No começo, havia a busca por uma linguagem que transcendesse o discurso lógico, que fosse além da própria poesia como era feita até então, e que terminou por implodir a linguagem. Como conseqüência dessa implosão, veio a poesia concreta", reflete hoje o poeta.
    Cinco anos mais tarde, Ferreira Gullar romperia com o movimento para criar outro, o neoconcretismo, esboçado no ensaio Teoria do não-objeto e que culminou com o famoso poema enterrado no chão.
    Uma nova virada aconteceria no início dos anos 60. Fiel ao clima da época, Ferreira Gullar voltou-se para a cultura popular, impregnando-se da linguagem do cordel. Da época, datam João Boa-Morte e Quem matou Aparecida, além das peças Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, com Oduvaldo Vianna Filho e Dr. Getúlio, com Dias Gomes. Presidente do CPC da Une quando aconteceu o golpe militar, Ferreira Gullar se exilou na Argentina em 1971.
    "Abandonei o neoconcretismo porque considerei que essa experiência estava esgotada. Isso coincidiu com uma virada da política brasileira, com a posse de João Goulart. Empolguei-me pela possibilidade de transformação social e minha poesia acompanhou isso", recorda Gullar. Segundo o poeta, essa reconciliação com a linguagem coloquial foi fundamental para definir novos rumos para sua obra. "Minha poesia de hoje é desdobramento disso. Costumo dizer que a poesia nasce da prosa. O que existe é a linguagem de todos. Uso e abuso dela, até da palavra chula. Nunca busquei o poema puro. Não me preocupo com experimentalismos ou estéticas verbais. Quero um poema que nasça da vida", afirma.
    Foi no exílio que Ferreira Gullar escreveu seu livro de maior repercussão, Poema sujo, De volta ao Brasil, publicou uma série de ensaios sobre artes plásticas, sua segunda paixão, como Argumentação contra a morte da arte, além de uma Antologia poética. Barulhos, editado em 87, foi seu último livro de poemas. No ano seguinte, escreveu suas memórias em Rabo de foguete.
    "Quando terminei Barulhos, tive a sensação nítida de que tinha me esgotado e não voltaria mais a escrever. Imaginei que a fonte tinha secado. Perdi a motivação e me senti vazio. Passava os meses sem ter vontade de escrever", conta Gullar. "Cheguei a passar um ano sem produzir um poema."
    Mas, um belo dia, a fonte voltou a jorrar. Num quarto de hotel de Nova Iorque o poeta retomou a palavra. "Meu Pai" é dessa leva. A produção seria interrompida várias vezes até que, em 1994, Gullar conheceu sua atual mulher, a jovem poeta Cláudia Ahimsa, na feira do livro de Frankfurt dedicada ao Brasil. "Isso para mim foi um renascer. Passei a escrever com muito mais freqüência. Foi um encontro inspirador", revela, sem medo de parecer um poeta romântico e comum.
    Em Muitas Vozes ouve-se o eco de toda essa experiência acumulada ao longo de quase sete décadas. Da eterna luta corporal com a palavra presente em "Sob a espada" até a política expressa em versos de "Queda de Allende", o novo livro apresenta um Gullar continuamente renovado.
    "Eu mesmo não acredito que estou chegando aos 70 anos. Nunca pensei que chegaria lá. Para mim, ano 2000 era algo impensável", afirma. No entanto, a idade lhe reservou boas surpresas, junto com a descoberta do amor tardio. "Nunca pensei que 70 anos fossem isso. Estou totalmente saudável, em plena vida", alegra-se o poeta, que parou de fumar há 10 anos e cortou a carne vermelha, as frituras e gorduras do seu cardápio, para dar uma ajudinha à sorte. "Não gosto de contar vantagem não. A gente sabe que é mortal, mas nem sempre se lembra ... felizmente."

Ferreira Gullar nasceu em São Luís, Maranhão, no dia 10 de setembro de 1930. Estréia na literatura em 1949, com a obra Um pouco acima do chão. Iniciou seu trajeto poético no Concretismo, passando depois a uma opção participante , de uso da poesia como denúncia e crítica. Com a decretação do AI-5, é preso, juntamente com Gil e Caetano. Gullar luta para captar, através da poesia, sua experiência pessoal, desde o início marcada por uma consciência social e estética. Desse modo, o principal traço de toda a sua obra é a busca da expressão, o corpo-a-corpo com a poesia. O poeta busca o sentido da poesia nas palavras, nos objetos, nas ruas da cidade, na noite, no sofrimento do povo, no cotidiano. O caminho sinuoso até hoje percorrido pelo poeta traduz algumas das importantes crises da atividade artística brasileira, nas últimas décadas, com suas mudanças, rupturas e retomadas.

Comentário: Em “Muitas Vozes” (1999), Ferreira Gullar reúne a produção dos últimos doze anos e demonstra que recorta as cenas do cotidiano com reflexões agudas, traçando imagens ao mesmo tempo delicadas e provocadoras.
Segundo o próprio autor, a fúria presente em todos os seus livros anteriores, neste está amainada. É um livro mais reflexivo, em que a temática da morte está muito presente, não como medo mas como reflexão.
Ouve-se o eco de toda experiência do poeta acumulada ao longo de quase sete décadas. Foi preciso muita coisa passar: o exílio, depois a morte rondar perto, familiar e sem ênfase; os mortos restarem no abandono do chão impenetrável; o silêncio crescer dos ausentes ao cosmos.
Seres que foram parte de uma vida e personagens de um romance e agora são também motivos poéticos. O poeta traz essas figuras não pela mão, mas pela voz, como vozes enlaçadas à sua voz que dá forma aos poemas, à qual se somam por vezes as vozes de outros poetas: Gonçalves Dias, Bandeira, Drummond, Rilke.

Muitas Vozes

Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.
(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:

             (...)

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.

O diálogo interrompido com os mortos: Thereza, Visita, Internação, Meu Pai, Evocação do Silêncio, O Morto e o Vivo.

Thereza

Sem apelo
              no vórtice do
dia no
abandono do chão na
lâmina da
luz feroz

          fora da vida

desfaz-se agora
a minha doída
desavinda companheira

Visita

no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era  o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo

                 Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando

Meu Pai

meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

O Morto e o Vivo

Inútil pedir
perdão
             dizer
que o traz
no coração

O morto não ouve

Poemas meditativos, de auto-reflexão, de reconhecimento das mudanças e dos limites de si mesmo e da voz poética: Nasce o Poeta, Adormecer, Tato, Reflexão, Aprendizado, Lição de um Gato Siamês, Não-Coisa, Isto e Aquilo.

Tato

Na poltrona da sala
as mãos sob a nuca
    sinto nos dedos
    a dureza do osso da cabeça
    a seda dos cabelos
    que são meus

A morte é uma certeza invencível

   mas o tato me dá
   a consistente realidade
  de minha presença no mundo

 Reflexão

Está fora
de meu alcance
o meu fim

Sei só até
onde sou

contemporâneo
de mim

Aprendizado

Quando jovem escrevi
num poema ‘começo
a esperar a morte’
e a morte era então
um facho
a arder vertiginoso, os dias
um heróico consumir-se
através de
esquinas e vaginas

Agora porém
depois de
tudo
sei que
apenas
morro

sem ênfase

Lição de um Gato Siamês

Só agora sei
que existe a eternidade:
é a duração
       finita
       da minha precariedade

O tempo fora
de mim
              é relativo
mas não o tempo vivo:
esse é eterno
porque afetivo
- dura eternamente
   enquanto vivo

E como não vivo
além do que vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo)

Não-Coisa

O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

           (...)

Isto e Aquilo

você é seu corpo
sua voz seu osso

você é seu cheiro
e o cheiro do outro

o prazer do beijo
você é seu gozo

o que vai morrer
quando o corpo morra

mas é também aquela
alegria (verso,
melodia)
que, intangível, adeja
acima
            do que a morte beija.

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